Conto de Natal - Uma Família Muito Estranha

Teixeira era um homem velho. Não sei que idade teria, mas parecia ter oitenta anos há, pelo menos três décadas.
Muito raramente saía de casa. Uma casa grande, demasiado grande para um homem só, sempre fechada, as portadas cerradas que impediam a entrada da luz do sol e, pensava Teixeira, os olhares indiscretos dos vizinhos.
De manhã ia ao correio e, uma vez por semana, à mercearia ao fundo da rua. As crianças temiam-no. Olhavam para o homem que nunca sorria e fugiam. Os cantos da boca sempre puxados para baixo e a testa sempre maldosamente franzida, intimidavam até os adultos e os mais pequenos passavam a palavra para que todos se afastassem do homem mau. Acreditavam que o Sr. Teixeira devia comer crianças, embora não tivessem provas concretas.
Teixeira também não ajudava a desvanecer aquela má impressão que deixava nos outros, sobretudo na criançada, pois não fazia segredo de que detestava crianças. Havia, contudo, outras coisas que Teixeira detestava. Sempre de mau humor, era de sobremaneira antipático com estrangeiros, de forma que quando soube que a casa ao lado da sua, há muito desabitada, estava a ser remodelada para receber uma família oriunda de um desses países em guerra no Médio Oriente, ficou ainda com pior feitio.
Na primeira semana de dezembro a família Alkhamis, oriunda da Síria, instalou-se na pequena moradia contigua à de Teixeira. O homem observou atentamente a azáfama da mudança pela fresta de uma portada que o vento havia quebrado parcialmente há coisa de dois anos, e que, a idade avançada e a saúde frágil, não lhe davam alento para arranjar.
“São estrangeiros e ainda por cima têm crianças”, resmungou, quando soube que os novos vizinhos eram Sírios e traziam com eles um rapazinho de 9 anos. De propósito, nunca os cumprimentava. Eles, pelo contrário, cumprimentavam-no sempre, amável e insistentemente, até que, ao fim de um tempo, não lhe restou mais do que responder à saudação.
— Porque é que tens um olhar tão mau? — perguntou-lhe certo dia de chofre Abu, arranhando o seu português novinho em folha. — Estás zangado ou estás triste?
Aquela pergunta irritou o Senhor Teixeira. Fora inusitada e despropositada, já que os seus sentimentos não eram da conta de ninguém e muito menos daquele miúdo estrangeiro. Um miúdo impertinente e metediço. Não respondeu, limitando-se a entrar em casa, e o seu olhar logo caiu no espelho do Hall que lhe refletiu, prontamente, o rosto. Carregou ainda mais o sobrolho enquanto se perguntava, mentalmente, se havia alguma regra, alguma lei escrita fosse onde fosse, que o abrigasse a andar sempre com um sorriso estampado na cara. Que disparate! Ele, João Teixeira, já tinha vivido muito e só ele determinaria de que forma devia viver e com que cara se mostraria aos outros. Que rapazinho petulante e atrevido! O seu comportamento era, com certeza, fruto da educação dada por aqueles muçulmanos imprestáveis e terroristas. Sim, terroristas. Era bem provável que numa daquelas caixas que eles haviam mudado para a sua nova casa, tivessem armas ou bombas lá dentro.
Mas, na manhã seguinte, Abu teve a ousadia de tocar-lhe à porta. Perguntou se o Sr. Teixeira não teria uns patins de gelo já velhos que não lhe servissem, pois gostaria muito de experimentar a pista de gelo que acabava de ser inaugurada no campo da Feira de Natal. Abu parecia muito entusiasmado enquanto explicava que se tivesse uns patins, seria mais fácil entrar nas brincadeiras e fazer novos amigos.
“Não, não tinha”. E mesmo que tivesse, não os daria ao miúdo estrangeiro. O Sr. Teixeira pô-lo da porta para fora de forma rude e desagradável. Pensou assim que tinha, finalmente, descartado o problema. O rapaz não voltaria a ter coragem para lhe bater à porta, o que era excelente, e acreditou que havia cortado o mal pela raiz. Não queria confianças com aquela gente.
Todavia, o Sr. Teixeira enganara-se. Foi com uma boa dose de incredulidade que, dois dias mais tarde, viu Abu, novamente a bater-lhe à porta. Desta vez, o rapazito vinha carregado com uma panela de Shakshuka, um prato típico da Siria que a mãe de Abu recriara naquela terra portuguesa.
Teixeira sabia muito bem que tudo aquilo tinha uma intenção escondida e certamente que não seria boa. Adivinhava que que se aquela família queria ganhar a sua confiança, o fazia pelas piores razões. Por isso, declinou a oferta, não contando com a insistência de Abu, por instantes, breves instantes, que a mente de Teixeira não parava de criar imagens de terror perpetrado pelos Alkhamis, Teixeira sentiu os aromas que se soltavam da panela. Aromas provocadores. Cheirava-lhe bem. Quando deu por si, hipnotizado pelo cheiro penetrante da comida que fumegava, lá acabou por aceitar, nem agradecendo, convencendo-se de que o fizera apenas para despachar o rapaz. Fechou a porta com estrondo e caminhou a passo largo para a cozinha, disposto a deitar toda aquela comida no lixo, mas mal abriu a tampa da panela, de novo aquele aroma delicioso o demoveu do seu intento. Quase maquinalmente, agarrou num garfo e provou a comida, ainda que a desconfiança não o tivesse abandonado. Deu por si a devorar com inusitada avidez tudo o que a panela continha, culpando-se de seguida por tê-lo feito. Passou aquele dia e o dia seguinte zangado consigo mesmo por ter aceite a panela com a comida. E agora, como a devolveria? Decidiu meter cinco euros lá dentro, pois devia ser disso que aquela gente estranha estava à espera. Nunca aceitaria esmolas de ninguém! Também não necessitava delas!
Para sua indignação, o dia seguinte trouxera-lhe os 5 euros de volta à caixa do correio. Os Alkhamis tinham-lhe feito a afronta de devolver o dinheiro. Quem eles pensavam que eram? O que é que queriam? Teriam achado pouco os cinco euros e quereriam mais dinheiro? Claro que sim. Oportunistas!
Por altura do Natal, as coisas foram piorando. Primeiro, encontrou um saco de bolachinhas pendurado na maçaneta da porta; depois, convidaram-no para o lanche. Naturalmente, não foi. Por fim, quando viram que sofria de uma lombalgia, racharam-lhe a lenha e arranjaram-lhe a portada que o vendaval de há dois anos havia partido.
Mas o Sr. Teixeira não queria de maneira alguma ficar em dívida. Por isso, quis dar-lhes cinquenta euros, e mais uma vez se indignou quando os vizinhos declinaram, agradecidos. Disseram que se tratava apenas de uma “ajuda entre vizinhos”, coisa que ele achou muito estranha. Atitudes dessas só podiam trazer água no bico, que ele bem sabia que ninguém dava nada a ninguém.
Uma semana antes do Natal, a Senhora Alkhamis bateu-lhe à porta para o convidar para a consoada. Aquilo ainda lhe soou mais estranho, pois sabia que os muçulmanos não celebravam o Natal. Claro que não iria e apressou-se a declinar o convite, mas foi apanhado de surpresa, quando a Senhora Alkhamis se antecipou a explicar que apesar do marido ser muçulmano ela era cristã e na sua casa sempre se celebrava o natal, pois os membros daquela família estavam habituados a respeitar-se uns aos outros. Por outro lado, também fora apanhado de surpresa pois nunca antes havia sido convidado por nenhuma família para passar o Natal. Tendo isso em conta, desta vez agradeceu ao mesmo tempo em que recusava o convite, tendo por, dada a insistência da matriarca da família, acabado por dizer que ia pensar. Continuava a perguntar-se o que andariam aquelas pessoas a tramar. Devia avisar a polícia? Cogitou alguns instantes sobre este assunto, mas abandonou a ideia, pois não queria passar por ridículo. Ia acusá-los de quê, realmente?
O dia 24 de dezembro estava cada vez mais próximo e Teixeira ainda não tinha conseguido decidir-se. Ou melhor, decidir-se já tinha decidido, mas tinha que arranjar uma forma de o dizer sem parecer grosseiro, pois, para todos os efeitos, a atitude dos Alkhamis parecia-lhe amável.
Na véspera de Natal, decidira comprar algum bacalhau para si mesmo, pois fazia questão de manter aquela tradição para a consoada, ainda que estivesse completamente só. Ao longe, vislumbrou Abu parado na beira da pista gelada a ver os outros rapazes a patinar. Aproximou-se. Alguns miúdos gozavam com ele por não ter patins e atiravam-lhe com bolas de gelo. Quando Abu deu conta de que Teixeira o observava, correu para ele e abraçou-o. Teixeira assustou-se com aquela busca por proteção, precisamente, nos seus braços. Aquilo era deveras estranho, pois habituara-se a que todas as crianças lhe fugissem. Então, sentiu pela primeira vez um estranho calor a crescer-lhe no peito, uma emoção que permanecia escondida há tantos anos, que ele já nem se lembrava de que ela existia. Sentiu os olhos cada vez mais húmidos e, às tantas, uma lágrima atrevida rolou-lhe pelo rosto abaixo. Repreendeu-se no imediato, tentando afastar o rapaz. Não era próprio. Se o seu pai ainda fosse vivo, havia de lhe dar um belo raspanete por aquele arrebatamento. Logo o pai que sempre odiara sentimentalismos.
Caminhava para casa imerso naqueles pensamentos quando os seus olhos poisaram na montra de uma loja. Havia patins de todas cores e tamanhos e assim enfeitados com aquelas decorações natalícias pareciam ainda mais apelativos. O rosto de Abu assomou-lhe à mente. Logo seguido de um flash com a imagem do rapazito recebendo um daqueles patins. Tal como tinha acontecido, quando recebera a panela de Shakshuka, Teixeira entrou em modo autómato. Entrou na loja e comprou o par de patins melhor e mais bonito que lá encontrou.
Ainda não sabia muito bem porque o tinha feito, apenas sabia que tinha sentido uma necessidade urgente de o fazer e também em modo autómato caminhou com o passo apressado para a casa dos Alkhamis com o embrulho debaixo do braço. A única coisa em que conseguia pensar era na alegria de Abu ao receber aquele presente.
A Sr.ª Alkhamis recebeu-o afetuosamente, cumprimentando-o como se ele fizesse parte da família. Abu, ao vê-lo, saltou-lhe ao pescoço, e o Sr. Alkhamis deu-lhe um aperto de mão e ofereceu-lhe a única poltrona da casa. Teixeira não sabia muito bem o que fazer ou que dizer, mas já que ali estava, resolvera baixar a guarda e mostrava-se também afável e cordial.
A mobília não era de bom gosto, faltavam várias coisas na casa que era, afinal de contas, a casa de uma família pobre acabada de chegar de uma parte longínqua do mundo, sabe-se lá porque temível razão. Mesmo assim, detetou a presença de um conforto inesperado na casa, um conforto que não vinha de móveis bonitos e tapetes quentes, era mais um conforto humano. A casa era acolhedora apesar do tanto que lhe faltava, porque tinha amor de sobra. A árvore de Natal estava decorada, a mesa humilde estava posta e a comida cheirava maravilhosamente. Parecia-lhe um daqueles natais da sua infância quando a mãe ainda vivia.
Após o jantar, a família entoou cânticos natalícios e Teixeira quis praguejar enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos. Certamente que se o pai o visse, o repreenderia por se deixar emocionar daquela maneira.
Pouco depois, quando o relógio da igreja bateu a doze badaladas, Teixeira esperou que a Srª Alkhamis começasse a distribuir os presentes. Não os havia. À meia-noite, todos deram as mãos em oração e até o Srº Alkhami, que era muçulmano, agradeceu pela noite que fora passada em amor, saúde e paz e isso era o mais importante. Teixeira não deixou de notar alguma tristeza em Abu quando os pais lhe explicaram que no ano seguinte, o Natal seria com certeza melhor e que então ele teria o seu presente. Talvez, quem sabe, os patins que ele tanto desejava. Então, Teixeira levantou-se e tirou de trás da poltrona em que assistira aos cânticos, o presente que comprara para Abu.
Enquanto o rapazinho ia desembrulhando, incrédulo, o seu presente, Teixeira pensou que poderia morrer naquele preciso momento, poderia morrer nessa noite, ou na manhã seguinte, pois acabara de viver o momento mais bonito que alguma vez tinha vivido. Os olhos brilhantes de Abu, ao ver os patins, luziam mais que as luzes da árvore de Natal todas juntas e essa seria a imagem que Teixeira levaria nos seus olhos, no dia em que eles se fechassem para sempre, porque ele sim, acabara de receber o melhor e mais bonito de todos os presentes.


Ana Kandsmar







Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Perdição de D. Sancho II, Paulo Pimentel

"Travessia no Deserto"