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A mostrar mensagens de maio, 2019

Do que já não digo

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Há tantas coisas que já não digo… Já nem sou eu…do que me lembro? De um rosto a quem chamar de amigo? Da aragem fria de dezembro? Há muitas coisas que já não digo… Já não digo mais “Meu Deus” Nem “meu amor” ou “amor meu” Sobre o meu corpo só poisam véus que a minha mente já esqueceu De tudo o que o que fui restou tão pouco Casca vazia que a vida repele Vagas lembranças, um pobre corpo Sou campo exausto, e são plenos rios Todos os sulcos da minha pele. Texto: Ana Kandsmar Fotografia de Sandra Ventura

Celebramos a 3ª idade

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Encaixo-me perfeitamente naquele grupo de pessoas que tem especial apreço por causas difíceis, gente que sofre e coisas partidas. Sobretudo, entre os meus amores maiores estão as crianças, os velhos e os animais. Encontrei, entretanto, alguém que é também um pouco como eu. Chama-se Sandra Ventura e faz trabalhos belíssimos de fotografia a idosos.  Juntei-me à Sandra. Na verdade, o que queremos com este trabalho é chamar a atenção para a desumanidade com que se tratam os idosos em Portugal;para o crime que cometemos ao votá-los ao esquecimento, ao desprezo, à negligência, abandono e, em tantos casos, maus tratos. Para combater tudo isso, juntamos as letras em forma de poesia,e as belas imagens que a Sandra capta, magistralmente, com a sua objectiva. Celebramos assim a 3ª idade e agradecemos aos velhos, aqueles em que nós próprios nos tornaremos um dia, se tivermos a sorte de viver o bastante, o seu importante legado. Sempre que aqui encontrarem uma imagem maravilhosa de um idoso e u

Suores Noturnos

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Tal nunca lhe tinha acontecido. Não fazia a mais pálida ideia de como acontecera. A bátega que se adensara tê-la-ia distraído; as mãos sempre a fugir do volante para desembaciar o vidro; a poça no alcatrão que afundara inesperadamente e a fizera perder a direção; o borrão do cigarro que lhe caíra no colo… não sabia. Mas sabia que sentira o carro bater em qualquer coisa.  A princípio duvidara que fosse um corpo. Mas logo a seguir, uma espécie de gemido entrara pelas frestas do vidro, que relutantemente entreabrira, e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.  Ficou à espera. Do silêncio. Ou da coragem, não sabia bem. Na verdade, temia sair do carro e encontrar ali um corpo ainda com vida a suplicar-lhe ajuda. Veria certamente a pedinchice a pingar dos olhos da sua vítima, e ela detestava ver pedinchice a pingar dos olhos de alguém. E temia também encontrar ali o anjo da morte com a sua foice e que ele, para castigo, a levasse a ela e não ao corpo estendido no chão. Voltou a ligar o

(O dia dos teus anos)

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Pedi-te que me visitasses em sonhos, avó. Ainda não o fizeste e por isso não te contei que guardei um dos teus lenços. Gosto de o levar ao nariz e procurar resquícios mornos do teu cheiro porque, quando o faço, acorrem-me memórias vivas. Ouço de novo as tuas canções e percorro outra vez, contigo, as giestas da serra; revivo as vindimas e os natais; descemos à charneca e ao alandroal. Saboreio o teu arroz de tomate e o teu café de borras; as fatias douradas, com aquela calda de laranja espessa e pegajosa; os chocolates que escondes para que eu não os coma a todos de uma só vez, e regresso ao teu pequeno jardim, que por esta altura se transforma num festim de cores e de perfumes. Sinto a tua mão a puxar a minha, para que me equilibre quando passamos o riacho e ouço os teus passos, que rangem no soalho do corredor. É então que quero que voltes a acordar no teu corpo. No corpo da criança que começaste a ser, um corpo franzino que cedo descobriu que a vida não é pera doce e que dos fr

Despedida

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"Despedida não são os pássaros que migram para o sul, nem é o verão que dá espaço ao outono. Não é a água que corre nos rios, a chuva que cai e limpa o pó de mais um dia. Não é o Sol que se põe a contemplar a Lua. Não é a estrela cadente. Não é o vasto universo. Não é a abelha que poliniza as flores. Não é o conto de fadas.  Despedida não é preenchimento. Não é meio cheio.Não é meio vazio. Não é metade. Não é quase. Não é o último punhado de terra. Despedida é só o fechar das cortinas. É só ausência. Mais nada." Ana Kandsmar in Somos Imortais, mas Temos que Morrer Primeiro

Podes ouvir-me?

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Saio no início da tarde, dou uma volta pelas principais ruas da cidade e sou surpreendida por um amigo que prende suavemente o meu braço e diz: “Podes ouvir-me por alguns minutos, por favor?”  Reencontrando-o depois de diversos meses, a intimidade do seu pedido surpreende-me. Homem normalmente reservado, confessa-se em plena crise existencial.  Ouço com toda a atenção de que sou capaz, tento compreender o desespero que se apodera dele. Depois de meia hora, ele parte aparentemente apaziguado, quase redimido, como se algo que eu lhe tivesse dito representasse a salvação.  Na verdade, apenas balbuciei duas ou três frases, sem importância alguma, mais para demonstrar o meu interesse do que para analisar as situações apresentadas. O que me leva a uma constatação óbvia: já não somos ouvidos e agarramo-nos à primeira pessoa que a isso se predispõe. Não importa o que ela tem para nos dizer, o que queremos é que alguém pare e demonstre interesse pelo que nos acontece.  As formas de

Lá estarei!

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Dos desamparos, das desistências e do profundo desejo de continuar a existir...

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Quando a luz se apagar nos meus olhos E soar a música orquestrada, Quando tombarem flores sobre o meu corpo E a minha vida se resumir a nada Ouçam-me em tudo o que não ouvem Vejam-me algures no pó da estrada Imaginem-me brisa ou arvoredo; Ou qualquer outra coisa intercalada Que possam ouvir só em segredo Quando se apagar esta luz dos meus olhos E a minha voz ficar, então, calada Ainda que por tão breves instantes  Será meu, o eco da montanha? Serão minhas as palavras sussurrantes? De entre um jardim na primavera Serei pássaro, terei asas? Verei a vida como era, O meu riso imortal pelas casas, Como um sonho ou uma quimera? Na vossa face, o meu beijo adocicado O abraço, tão apertado como dantes As memórias mais doces do passado Voltarão a ser reais por uns instantes. Quando a luz se apagar nos meus olhos E o relógio ficar parado No exacto minuto em que me extingo Será, para sempre, o marco errado

Mar

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Morres onde? No frio da pedra? Na indiferença do aço? Nas ruas do sangue? Porque é nos metais que intensamente vivemos. Crucificados sim! Acredita nisto que te digo, o tempo corre sobre o teu corpo e deixa marcas, sulcos e rastos de dores tristes, rios de prata, noites de amor que não aconteceram, mãos acetinadas. Também eu às vezes uivo. Como te contei, uma vez por outra, a lua chega e traz suspiros, ais, lágrimas, coisas que o pudor deve guardar. É então que sou uma loba... gosto de morder, de agarrar com os dentes, de ser por inteiro possuída.  E tu,porque morres? Diz-me, o que é isso de morrer? Em que praia distante? Como se faz? Como fazes? Abres talvez as pernas e deixas que, impulsivo, te penetre o mar? Ana Kandsmar