(O dia dos teus anos)



Pedi-te que me visitasses em sonhos, avó. Ainda não o fizeste e por isso não te contei que guardei um dos teus lenços. Gosto de o levar ao nariz e procurar resquícios mornos do teu cheiro porque, quando o faço, acorrem-me memórias vivas. Ouço de novo as tuas canções e percorro outra vez, contigo, as giestas da serra; revivo as vindimas e os natais; descemos à charneca e ao alandroal. Saboreio o teu arroz de tomate e o teu café de borras; as fatias douradas, com aquela calda de laranja espessa e pegajosa; os chocolates que escondes para que eu não os coma a todos de uma só vez, e regresso ao teu pequeno jardim, que por esta altura se transforma num festim de cores e de perfumes. Sinto a tua mão a puxar a minha, para que me equilibre quando passamos o riacho e ouço os teus passos, que rangem no soalho do corredor. É então que quero que voltes a acordar no teu corpo. No corpo da criança que começaste a ser, um corpo franzino que cedo descobriu que a vida não é pera doce e que dos fracos não reza a história.
Quero que chegues pela manhã como a luz que desponta no horizonte. E eu tratarei de te fazer feliz, avó. Mostrar-te-ei que aquele preciso minuto em que os teus olhos se fecharam nos enganou e desiludiu, mas apenas por um bocadinho. Foi um equívoco, avó. Não havia nenhum Tanatos à tua cabeceira, nem te esperava o barqueiro. Se voltares a acordar no teu corpo, no corpo da criança que começaste a ser, eu tratarei de te fazer feliz, avó. Há muito que ainda não viste e tanto que não viveste. Passaste veloz e solitária por 85 invernos penosos e cheios de privações. A pobreza nunca te largou e apresentou-te, em tempos, à fome e à guerra; aos rigores de Salazar; ao Cristo falante; aos crepúsculos do teu quintal; aos santos populares, sempre em folguedos perigosos; homens incultos e rudes; sexo por obrigação; trabalho árduo, partos em colchão de palha; sopas de cavalo cansado, um abril que te enganou e filhos que não te mereceram. Desta vez, avó, desta vez prometo-te, tudo será diferente.
Se voltares a acordar no teu corpo, no corpo da criança que começaste a ser, prometo que cuido de ti, avó. Brincarás no teu jardim de cóleos e brincos- de- princesa, estudarás para seres quem tu quiseres, e lerás os livros que nunca leste. Levar-te-ei a ver o mar, aquele mesmo que viste uma vez, só uma vez e disseste “tanta água, tanta água!” e abriste os teus olhos de espanto por te parecer um milagre que o mar e o céu se tocassem. E depois da tua infância feliz, depois da tua adolescência das mil descobertas, encontrarás então um homem que viverá no teu coração e não te sairá da cabeça. Ele entrará no teu corpo pela noitinha e aninhar-se-á num lugar teu, menos sombrio, onde encontrará uma luz cintilante sobre lindas medusas de gelatina, e juntos darão frutos que nunca apodrecem. Saberás o que é amar e ser amada.
E então, dir-te-ei num suspiro, avó, que agora sim, valeu a pena.


Ana Kandsmar


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