A Casa




"À casa que foi nossa, não mais voltei. Minto. 
A estrada que lhe é larga na frente, serpenteia por entre arbustos que me escondem e eu espreitei-a, amiúde, nos dias seguintes à minha ausência, ao fecho definitivo da porta, à entrega das chaves. Depois disso, não mais retornei. Minto. 
Passei-lhe em frente ainda ontem, o carro deslizando devagarinho a rua deserta, ao compasso de um cortejo fúnebre, lento, lento. Vislumbrei num rompante, de desdém calcinado, a fachada curvilínea, o mármore da pedra emoldurando as janelas translúcidas. Minto. 
Em sobressalto, mirei o abandono da casa fechada. Doeu-me a secura curvada das roseiras que plantei em tempos e chorei a seda descuidada das suas pétalas. Quando também o futuro me parecia a direito e alinhado a prumo, levei à terra as hortenses azuis alongando o muro, a palmeira que cresceu viçosa ao centro da relva, a hera atrevida trepando os arcos. “Vende-se”. Segui, indiferente, que na vida não se pode olhar para trás. Minto. 
Parei e entrei. A mulher no cartaz da imobiliária sorri-me, confiante, enquanto cruza os braços, e o sorriso dela trespassa-me o orgulho ferido de morte. Avancei como uma lesma, rastejando a calçada solta que abre caminho até ao pórtico. Minto. 
Quase corri. Remendei, com o olhar, as cortinas rasgadas das janelas e hesitei-me no caminho sinuoso que conduz à entrada. Minto. 
Empurrei a porta, estranhamente entreaberta, e ali estavam os miúdos, tão pequenos ainda, quase bebés, inundados de mimos e cuidados. Tu, com o teu ar sobranceiro, sempre ocupado, no escritório que era a tua ilha, a tua torre solitária na casa, o cofre dos teus segredos, as aventuras que julgavas a salvo. Depois embalavas-me o cansaço num western manhoso e repetias em surdina as falas amargas do herói desamparado. Voltei as costas aos teus eus que me iam surgindo num bailado de memórias assombradas e saí. Saí sem pena nem saudade dos domingos em que cantavas e cortavas a relva num slalom tresloucado por entre os aspersores, como se dançasses à chuva e bradasses aos céus o estarmos felizes. Não minto. 
Como poderia se, em tantos anos, mentiste tu, tantas vezes?"


Ana Kandsmar in Somos Imortais, mas temos que morrer primeiro

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