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A mostrar mensagens de junho, 2020

«Estou às tuas ordens...»

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«Ajeitou a roupa da cama que se enrodilhara nas voltas que lhe dera, voltou à sala, serviu-se de um whisky e depois de outro e ligou o computador. Deixou-se ficar quieto, rolando o scroll do aparelho, vendo o desfilar de letras no ficheiro do word, tanta coisa já escrita, capítulo 1, 2, 3, por ali afora, não sabia se alguma coisa realmente boa, mas se não o fosse, claro que a culpa não seria dela, que lhe relatava por A+B o tal tratado sobre o desencontro, o romance sofrido, o amor arrancado a ferros.  Continuaria então a fazer das tripas coração. Era para isso que ela lhe pagava e não para se apaixonar. Isso já era coisa fora dos planos, passos mal dados a extrapolar o trilho. Ouvi-la-ia. Levaria aquele desenrolar de memórias ou de invenções delirantes, já não queria saber, até ao fim. Deixaria o texto arrumado, pronto para enviar à editora, e a partir dali, era com ela. Que alguém paginasse, que alguém criasse a capa, o trabalho dele ficaria feito e depois disso, seguiria em frente.

Pietá

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Vi-te fazer poesia. A poesia das mães que deitam o coração à terra. Vi-te, nesse gesto grande e de amor ainda maior, de amor que não cabe no mundo, carregando a mortalha do teu filho e, com as tuas próprias mãos, submersa na mais profunda e impiedosa dor, baixando-a à alcova final, o derradeiro útero. Acredita que se engalanou a Terra inteira para o receber. Era o teu bem mais precioso e ela, sabendo-o, revestiu-se das mais belas flores e amornou o seu ventre. Embala-o agora, amorosamente, como o fizeste tu tantas vezes. Vi-te um Atlas que, acabado o tempo de colher as maçãs de ouro, segurou o céu sobre os seus ombros, e tu seguras agora o céu sobre os teus ombros. Como Atlas, arrastando os passos, deixaste um rasto de silêncio, o silêncio da noite mais densa. Mas eu ouvi o teu silêncio e sei dos gritos de dor feroz que o teu silêncio esconde. A tua dor, a dor da mãe que perde o seu filho, é uma dor que vem sempre do mais fundo dos abismos e ecoa no recanto mais distante do universo. N

A Dor...

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Não devia uma mãe perder o seu filho para não ter que adormecer de coração carcomido nem ter que acordar sem querê-lo nem ter que falar sem palavras pondo no lugar delas a sua monção Não devia uma mãe perder o seu filho para não ter que abraçar o vazio endoidecer à procura dos dias em que ele ainda estava no berço em que adormecia embalado pelas suas mãos Não devia uma mãe perder o seu filho para não sentir o abismo que a suga e poder dizer Este não foi o último muitos foram os beijos que lhe dei depois desse e tantos outros antes desse tantos abraços, risos e partilhas, ambos crescendo explorando a vida e os seus milagres tornando doce o amargo embelezando o feio celebrando amanheceres diários dando cor aos dias cinzentos... Não devia uma mãe perder o seu filho e ter apenas para memória todos os dias em que foi mãe Não devia uma mãe perder o seu filho porque não é justiça, nem é equilíbrio é só a ordem anti-natura das coisas escarnecendo da mãe cruelmente mostrando que não há remédio

Alberto

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Aquilo era assim: antes das nove já estávamos na padaria dos retornados a comprar paposecos acabados de sair do forno. E era daquele balcão, que vertia um delicioso cheirinho a pão quente, que lhe via a carapinha densa e depois os olhos quais esferas negras, brilhantes ,como berlindes a reluzir ao sol. Era o Alberto.   De olhos mais sorridentes que a boca que essa, tímida, tão tímida que demorou uma eternidade até produzir o som do primeiro “olá”. Fui eu que, como a mandar-lhe o isco, uma manhã, lhe estendi o punho fechado, abrindo-o depois mesmo à frente do seu nariz, carregado de pastilhas elásticas. Eu abri-lhe um sorriso convidativo à amizade e ele, primeiro hesitante, aceitou. A mão escura e sapuda agitou os seus dedos pequenitos, mais que os meus, que eram magros e esguios, e tirou uma pastilha. “não queres ir brincar?” atirei, afoita, ciente de que a resposta poderia ser a fuga ou um movimento da cabeça como a catar o vento. Mas não. Ele levantou ainda mais o rosto, já co