«Estou às tuas ordens...»


«Ajeitou a roupa da cama que se enrodilhara nas voltas que lhe dera, voltou à sala, serviu-se de um whisky e depois de outro e ligou o computador. Deixou-se ficar quieto, rolando o scroll do aparelho, vendo o desfilar de letras no ficheiro do word, tanta coisa já escrita, capítulo 1, 2, 3, por ali afora, não sabia se alguma coisa realmente boa, mas se não o fosse, claro que a culpa não seria dela, que lhe relatava por A+B o tal tratado sobre o desencontro, o romance sofrido, o amor arrancado a ferros. 
Continuaria então a fazer das tripas coração. Era para isso que ela lhe pagava e não para se apaixonar. Isso já era coisa fora dos planos, passos mal dados a extrapolar o trilho. Ouvi-la-ia. Levaria aquele desenrolar de memórias ou de invenções delirantes, já não queria saber, até ao fim. Deixaria o texto arrumado, pronto para enviar à editora, e a partir dali, era com ela. Que alguém paginasse, que alguém criasse a capa, o trabalho dele ficaria feito e depois disso, seguiria em frente. E ao contrário dela, não olharia para trás.
 Estava farto de lhe manifestar a sua dor de forma gentil, como um pássaro ferido que acordava com a luz da madrugada por entre a ramagem, a cumprimentar em silêncio a manhã. Estava cansado de ser cauteloso e inseguro, a cantar baixinho, sempre meigo, um disfarce para a exaltação que tantas vezes sentia no peito. 
A gentileza com que se obrigava a lidar com o descaso dela começava a transtorná-lo. Receava que, entretanto, já não fosse capaz de a consolar, que lhe saíssem palavras tortas e rarefeitas, que ele próprio já não soubesse onde ir buscar consolo. 
Às vezes, sentia-se a agir de maneira tonta porque se lhe descoordenava o sentir e a inteligência emocional o abandonava. Às vezes sentia-se um vadio. Desejava que ela investisse nele. Ou então, que ele parasse de investir nela. Seria o mais seguro. 
«A tua postura, quase fria, não tem nada a ver com defesa, meu amor, mas com embate.» Apetecia-lhe dizer-lhe. «Anda, que eu aguento. Às tuas ordens. Ou talvez já não queira ser contigo como sempre fui. A tratar-te nas palminhas, a fazer-te cerimónia, sempre a dizer-te o que queres ouvir.» Mas, se calhar, ele não sabia ser de outra maneira. 
Se calhar, ele não tinha coragem para lutar contra o mundo, contra o filho da puta do universo que a tinha posto no seu caminho, roubando-a a outro tempo, a outro homem. Um tempo ao qual ela na verdade pertencia, outro homem a quem ela realmente amava. Ele já não sabia. Sentia-se confuso e farto das suposições. 
Ela era-lhe território tão desconhecido quanto Marte, ou mais, pois não conseguia sequer sondá-la. Sofia revelava apenas o que queria e quando queria. Ele tinha que ficar à espera. Pacientemente. Culpa dele que a tinha habituado àquilo.
 Quando ela não lhe mostrava a alma no que relatava para o gravador ele só podia adivinhar o que ela pensava. Era assim que passava a maior parte do tempo. A adivinhar o que ela pensava. Nos intervalos, ia-lhe dizendo tudo o que ela queria ouvir, o que lhe apetecia ouvir, era a sua forma de lhe dar mimo. 
«Estou às tuas ordens. Se queres que eu te esconda da dor, eu escondo-te. Se queres que eu te esconda a minha dor, eu escondo. Recolho-a cá dentro, onde ela não te chegue e depois embalo-a com uma canção triste, porque, sinceramente, qualquer alegria me parece despropositada e inútil como uma clareira súbita num bosque cerrado. Não sei como te fazer bem. Quero fazer-te falar quando queres estar calada, quero que te cales quando falas. Quero sobretudo que te cales, quando me queres falar dessa vida que trazes na pele. Aceito de bom grado o teu silêncio. E ao mesmo tempo, irritas-me quando não gritas, quando não te queixas. Preferia mil vezes as tuas birras, as tuas indolências, os teus caprichos e desatinos a esse silêncio enclausurado nas memórias em que eu não vivo. Sou um excluído. E mesmo assim estou às tuas ordens. Continuo meigo como um pássaro inseguro, deixo-me pousado na tua mão, quase submisso, subjugado aos teus humores. Vejo-te, às vezes, zangada. Outras, quebrada, ausente e incrédula, a espreitar a medo por entre as minhas asas, mas com o espírito – esse presumível foragido – intacto. Tu é que não o sabes.»

Ana Kandsmar, A Lenda do Havn


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