Alberto




Aquilo era assim: antes das nove já estávamos na padaria dos retornados a comprar paposecos acabados de sair do forno. E era daquele balcão, que vertia um delicioso cheirinho a pão quente, que lhe via a carapinha densa e depois os olhos quais esferas negras, brilhantes ,como berlindes a reluzir ao sol. Era o Alberto.
 
De olhos mais sorridentes que a boca que essa, tímida, tão tímida que demorou uma eternidade até produzir o som do primeiro “olá”. Fui eu que, como a mandar-lhe o isco, uma manhã, lhe estendi o punho fechado, abrindo-o depois mesmo à frente do seu nariz, carregado de pastilhas elásticas. Eu abri-lhe um sorriso convidativo à amizade e ele, primeiro hesitante, aceitou. A mão escura e sapuda agitou os seus dedos pequenitos, mais que os meus, que eram magros e esguios, e tirou uma pastilha. “não queres ir brincar?” atirei, afoita, ciente de que a resposta poderia ser a fuga ou um movimento da cabeça como a catar o vento. Mas não. Ele levantou ainda mais o rosto, já com os seus muros internos ruindo com o toque da gentileza que há nas crianças. Abanou o rosto, pendendo-o para cima e para baixo, e vi-lhe então aqueles dentitos pequenos e muito, muito brancos e ainda todos, que a mim já faltavam os que dariam lugar aos definitivos. Soube, naquele momento, que nos tornaríamos amigos. Amigos como irmãos. 

E assim foi por muitos anos, entre a rua dos cafés e as dunas de Salir, de onde nos atirávamos a rebolar até cá abaixo soltando gritos e gargalhadas. Todos os dias, às 5 da tarde, partilhávamos pão com marmelada e fruta.
 Aprendemos, um com o outro, a vencer as pequenas ondas da baía, ganhando o jeito para mover os braços e as pernas sobre elas. 
Corríamos pelo areal e fingíamos falar inglês quando, na verdade, verbalizávamos um dialeto estranho, impercetível, tentando reproduzir os sons que ouvíamos aos miúdos estrangeiros a quem nos juntávamos para brincar. 
Ninguém nos entendia as palavras, mas os gestos esses, universais, eram claros e abriam-nos os caminhos da diversão. 
Às vezes, ao lanche, pagavam-nos gelados. E com sorte eram Cornetos em vez daqueles de gelo e aromatizantes que sabiam a laranja ou ananás. 
Procurávamos conchas que oferecíamos um ao outro, como se presentes de enorme valor e, à noitinha, quando voltávamos às nossas camas, exaustos de mais um dia de praia, ficávamos ainda de olhos abertos a rever as aventuras vividas e a imaginar as do dia seguinte. 

Até que, chegou o ano em que já não encontrei o Alberto. A padaria havia mudado de proprietários e também ele tinha partido. Voltara a Luanda, cidade de onde os pais e irmãos nunca tinham saído.
Não voltei a vê-lo, mas nunca o esqueci. E hoje, sobretudo hoje, tempo estranho e desconhecido, que tantos debates sobre o racismo nos traz, lembro-o ainda mais. 
Não deixa de ser curioso que se tenham transformado em palavras de ordem, aquelas que, ainda nos anos 70, eram para mim tão claras, naturais, completamente desprovidas de segundas interpretações: “Vidas negras importam”. Inquestionável. Há 40 anos não era preciso dizê-las em voz alta. Não era preciso empunhar cartazes pintados com uma frase tão óbvia. Seria como se tivéssemos que lembrar aos demais que “o oxigénio é essencial à vida”. Ninguém põe isso em causa. Há coisas que de tão básicas, fundamentais, primárias, não precisam de ser levadas à discussão.

 Não sei onde anda o Alberto, nem o que pensa ele de tudo isto (se ainda estiver vivo). Não sei se, de vez em quando, me recorda, com o meu cabelo curto, à rapaz, a correr com ele por entre os chapéus de sol, levantando areia com os pés, perigosamente perto de toalhas estendidas. Mas se o fizer, há de saber que a nossa amizade foi verdadeira e que, algures, há uma mulher adulta que quando revisita a infância o vê a ele, ao início tímido e depois extrovertido, feliz, tão feliz quanto uma criança pode ser. Uma mulher adulta que não relembra um rapazinho preto, relembra apenas um rapazinho. Um rapazinho que a ajudou a criar das mais belas memórias da infância. Obrigada, Alberto. 

P.S. Talvez este texto chegue ao Alberto. Pode ser que eu o encontre por aí.

Ana Kandsmar



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