Podes ouvir-me?

Saio no início da tarde, dou uma volta pelas principais ruas da cidade e sou surpreendida por um amigo que prende suavemente o meu braço e diz: “Podes ouvir-me por alguns minutos, por favor?”
 Reencontrando-o depois de diversos meses, a intimidade do seu pedido surpreende-me. Homem normalmente reservado, confessa-se em plena crise existencial. 
Ouço com toda a atenção de que sou capaz, tento compreender o desespero que se apodera dele. Depois de meia hora, ele parte aparentemente apaziguado, quase redimido, como se algo que eu lhe tivesse dito representasse a salvação. 
Na verdade, apenas balbuciei duas ou três frases, sem importância alguma, mais para demonstrar o meu interesse do que para analisar as situações apresentadas. O que me leva a uma constatação óbvia: já não somos ouvidos e agarramo-nos à primeira pessoa que a isso se predispõe. Não importa o que ela tem para nos dizer, o que queremos é que alguém pare e demonstre interesse pelo que nos acontece. 
As formas de comunicação expandem-se vertiginosamente. Os nossos “amigos” virtuais são contados às centenas, quando não aos milhares. “Tu não tens Facebook? Não acredito. E como fazes para encontrar as pessoas?” Pergunta cada vez mais recorrente feita a quem não participa das redes sociais em voga. Aliás, quem não tem Facebook é praticamente marginalizado, olhado de lado já como se de um E.T. se tratasse. No entanto, muitos dos que aqui se orgulham de partilhar uma viagem a Marrocos, o que comeram ao almoço ou mesmo a briga mais recente com a namorada, tornaram-se incapazes de acolher quem está ao seu lado, a suplicar por alguns minutos de atenção.
Nunca nos sentimos tão sozinhos. E esse é o resultado desta atrofia emocional. Os casais preferem muitas vezes passar as únicas horas do dia em que poderiam estar juntos, conectados aos seus computadores. Não faltará muito até que troquem mensagens on-line, mesmo a poucos metros de distância um do outro. 
Todas as grandes tradições filosóficas e religiosas enfatizaram a importância de ouvir, de acolher. Poucos de nós não são assaltados por algum sentimento de orfandade durante a existência. Ler um livro ajuda, ter uma família idem e mais ainda reunir-se com quem professa ideias parecidas com as nossas. Mas nada disso garante que somos escutados, no sentido mais profundo da palavra. Que as nossas dúvidas encontram ressonância em ouvidos alheios. 
Andamos distraídos e excessivamente enamorados de nós mesmos. Procuramos a satisfação imediata dos nossos desejos, o mundo tal como o conhecemos hoje é uma gigantesca fábrica de hedonistas. Esquecemos que ao nosso lado temos pessoas que querem unicamente um modesto pedaço do nosso tempo.
O que lhes damos, grande parte das vezes, é um breve intervalo, em que a distração é a protagonista. Os consultórios terapêuticos não estariam tão cheios se cada um tivesse alguém que se predispusesse a acolher o que nos atormenta ou deixa felizes. 
Sentir é apenas uma parte da história. Partilhar dá-nos a sensação de pertença. Mas é difícil não perceber o grau de solidão em que muitos mergulham. Sucesso profissional, financeiro ou mesmo afetivo nem sempre representa a proteção que nos salva do abismo da angústia. Perdidos dentro de um grande mar de escolhas, andamos sem rumo, e queremos que alguém nos reconheça, dando-nos espaço para traduzirmos o que nos vai na alma. É pouco o que pedimos, mas parece ser muito para quem está ocupado a ouvir o timbre da própria voz. O que para nós muitas vezes não tem importância alguma é questão de vida ou de morte para o outro.
 Gosto de me deslocar de mim, pensar nos universos infinitamente pequenos e infinitamente grandes. Oscilo entre os átomos e o cosmos. Isso diminui admiravelmente a importância que eu eventualmente me possa atribuir. Conjugação que me agrada e faz com que eu repita, constantemente: passarei, passaremos, passarão. 
Diminuo o passo em busca de mais um viajante que queira dividir comigo a surpresa de ser. A surpresa de todo o Ser.

Ana Kandsmar


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