Suores Noturnos

Tal nunca lhe tinha acontecido. Não fazia a mais pálida ideia de como acontecera. A bátega que se adensara tê-la-ia distraído; as mãos sempre a fugir do volante para desembaciar o vidro; a poça no alcatrão que afundara inesperadamente e a fizera perder a direção; o borrão do cigarro que lhe caíra no colo… não sabia. Mas sabia que sentira o carro bater em qualquer coisa. 

A princípio duvidara que fosse um corpo. Mas logo a seguir, uma espécie de gemido entrara pelas frestas do vidro, que relutantemente entreabrira, e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. 
Ficou à espera. Do silêncio. Ou da coragem, não sabia bem. Na verdade, temia sair do carro e encontrar ali um corpo ainda com vida a suplicar-lhe ajuda. Veria certamente a pedinchice a pingar dos olhos da sua vítima, e ela detestava ver pedinchice a pingar dos olhos de alguém. E temia também encontrar ali o anjo da morte com a sua foice e que ele, para castigo, a levasse a ela e não ao corpo estendido no chão. Voltou a ligar os faróis do carro, olhou em volta com os olhos arregalados; deixou os ouvidos à escuta por mais alguns minutos na expectativa de despistar qualquer ode celestial. Não. Não havia ali ninguém. Nem do céu, nem do inferno. E, contudo, o homem, sim era de certeza um homem, ainda ali jazia. 
Quando saiu do carro percebeu que havia uma poça de sangue no alcatrão. O sangue era espesso. Imaginou-o de uma mornidão confortável. 
Olhou em redor e para cima. Os prédios dormiam sossegados e o vento da madrugada restolhava nas árvores feias do bairro. Olhou mais uma vez em redor e não viu ninguém. Ninguém, à excepção do corpo volumoso e inerte, que minutos antes se atravessara à frente do carro. Estava de borco. Tinha os olhos fechados. O rosto quase mergulhara na poça, e tanto quanto lhe era dado a perceber, não respirava. Sabia, obviamente, quem era e uma onda de calor invadiu-lhe o corpo. Sentiu gratidão. E a gratidão levou-a instintivamente a passar os olhos pelo relógio, só para confirmar se haveria naquela conjugação de horas, minutos, segundos e milésimas de segundo, alguma capicua que lhe mostrasse que se havia ali mão criminosa, era do destino e não dela. Com efeito, nada viu no relógio que lhe apaziguasse a alma, mas quando voltou a cruzar o horizonte, pousou os olhos na porta da tabacaria. 606. Uma capicua. 
Respirou fundo e acendeu mais um cigarro. Voltou para casa e adormeceu. Dormiu como há muito não dormia. Não sonhou com longas labaredas, nem sentiu o cheiro do enxofre. Não sonhou que caía de um prédio com quarenta andares; que estava no interior de uma nave e aterrava no planeta dos macacos. Não sonhou que fazia amor numa praia deserta, não sentiu as pernas húmidas a contorcerem-se no meio do algodão da roupa, nem rebates de consciência. Tivera uma noite sem suores noturnos, pacífica. A realidade só voltou a impor-se quando, na manhã seguinte, voltou à tabacaria 606 e o morto lhe vendeu, como de costume, um maço de Marlboro.


Ana Kandsmar




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