Detalhes


Nunca cheguei a saber do que mais gostas.

São tantas as coisas tuas que me passaram ao lado e se dissolveram na minha ignorância de ti. Jamais soube qual é o sabor do teu pudim preferido, quantas colheres de açúcar no café, o nome do último filme que viste, o livro na tua cabeceira, quanto tempo entre o duche e o pijama, ou quantas vezes deixas tocar o despertador. Enfim, dos rituais, das rotinas, daqueles chatos e enfadonhos gestos com que preenches os dias maquinalmente, sem novidade, sem tropeção no improviso, só posso atirar à sorte. Os que conheço, são poucos, pequenos nadas, partículas ínfimas da tua existência, micro- hábitos na vastidão dos teus dias, que foste deixando escapar por entre as brechas breves dos nossos corpos colados.
Sei que, entretanto, já tudo pode ter mudado. Mas lembro-me da tua mania de refilares por causa da persiana velha que, atrevida, te brindava todas as manhãs com os primeiros raios de sol, e à noite, permitia a invasão dos pequenos laivos da luz dourada dos candeeiros da rua.

Parece-me que ainda ouço os tiques-taques do relógio, esquecido ao lado da cama, e do teu mau humor por não conseguires dormir. São os pequenos pormenores como estes que te tornam real e único. Detalhes de ti que ainda espreitam por detrás das brumas do nosso passado e vêm sorrateiras até mim, aconchegam-se na minha mente e trazem-te de volta, a baixares o volume da música, a dividires comigo as tuas bolachas favoritas, a fazeres-me companhia enquanto fumo cigarros e me enrosco no teu colo a falar de tudo e de nada. 

Ainda vou contigo ao staples, à rua das montras, ao parque e à praia, ao Pikassus e às lágrimas. 

Ainda me vejo sem graça e sem jeito a fazer poses para as tuas fotografias, a reclamar das tuas câmaras e tripés. 

Ainda me sinto insegura e bamba a equilibrar saltos altos nas ruas medievais e a agarrar-me ao teu braço para não me deixares cair. 

Se eu fecho os olhos atenta nos teus detalhes, ecoa-me a tua voz nos meus ouvidos e o sabor da tua pele na minha boca.

Hoje podes estar diferente, não sei. A tua voz pode estar estranha, aglutinada a esse novo arrulhar nórdico que vai fazer o meu nome soar diferente. 

Aposto que agora trocas o “sim! pelo “Ya” e o “vou já” pelo “jawohl”. Talvez já não ponhas os “pontos” nos “i’s”, mas os “trema” nos “u’s”. Fizeste talvez um upload de novos hábitos e é disso que tenho medo, sabes? Quem sabe se não estarás mais tolerante com as minhas falhas, mais compassivo com os meus defeitos, mais assertivo no teu discurso, mas não sei se ainda me tiras o fôlego ou se me provocas taquicardias. 

Antigamente, eras capaz de me incendiar por dentro antes mesmo de me tocares. Hoje, receio, que dês primazia a outros talentos e prefiras a arte de fazeres deliciosas Bolas de Berlim e cantares bem o tirolês.

AK


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