Lugar Certo
“Vou-me embora”. Disseste. Olhaste-me de soslaio como um cão raivoso, pegaste na mala atulhada de roupa engelhada, agarraste nas chaves e fingiste-te por momentos, desorientado com o paradeiro do telemóvel, como que a dares-me tempo para que da minha boca saísse uma única palavra: “Fica”.
Mas não saiu. Em vez disso matutei, naquele “não te suporto” que atiraste rápido e certeiro. Durante muito tempo, palavras como essas eclodiram nos meus ouvidos. Bombas atómicas, que me estilhaçaram, fragmentos de uma história que me atravessou a existência com a violência de um tornado, um ciclone desabrido e destruidor.
Mas hoje já não. Aprendi a domar as minhas lembranças obrigando-me à selecção apenas das coisas boas, das que valem a pena recordar.
É claro que também me lembro de abrires devagar a porta da rua e de a teres fechado atrás de ti, em câmara lenta, como que para não acordares a tentação de me abraçares e te deixares ficar. Foi assim uma das nossas muitas despedidas.
Já não viste quando me lancei ao hall, onde estaquei de pé, num silêncio lívido, como um espectro desorientado que já não tinha mais por onde assombrar. Quando o estalido da fechadura antecipou a crueza dos teus passos na escada, deixei-me cair de joelhos sobre a tijoleira fria e agarrei-me à porta que rangeu e chorou comigo como uma carpideira paga.
Tive que deixar-te sair. Se tivesses ficado mais um minuto ter-me-ias visto a desabar como uma criança de colo que acabou de perder a mãe. Ter-me-ias visto frágil, feita num oito, um trapo a afogar-se lentamente numa poça. E nunca um homem me viu chorar. Não assim, como se toda eu me rasgasse por dentro e fosse barragem de comportas abertas. Não assim.
Foi aí que te ouvi a abandonar o prédio como se perseguido por soldados de terracota ou qualquer outro exército maldito.
Conseguiste pôr-te a salvo. Ficaste livre de todos os encalços mal entraste no carro e te puseste a milhas.Fugiste de tudo o que fomos e vivemos e deixaste para trás uma história também tua. Deixaste-me para trás. E depois, muito tempo depois, voltaste. Porquê? Eu digo-te porquê: Porque não conseguiste enxotar-me da tua lembrança, ali parada no hall, finalmente vencida, finalmente fantasma. Nem tão pouco a tua memória apagou a intensidade com que nos amámos e fomos felizes. Seja como for, no remanso daquela manhã de oráculo que nos anunciou mais um verão triste, condenaste-nos mais uma vez ao desnorte, em voos por retiros de saudade e agonia que desde então nos enganam com falsas promessas de alívio. É por isso que de tempos a tempos temos esta necessidade de voltar a cair nos braços seguros um do outro. Os mesmos que nos dão a única certeza de que somos realmente amados e estamos por fim, no lugar certo.
AK

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