Paulinho


 


Brancas/1993

 

Às vezes temos medo. Do desconhecido. Às vezes julgamos conhecer o desconhecido e temos medo. O desconhecido pode ser uma imagem parada na nossa mente. Nublada. Ensombrada. Na penumbra. Pode ser a noite que é a penumbra mais densa que conhecemos. Ou pode ser o escuro. O vazio. O medo pode ter muitas formas. Pode ser um rapaz. Um rapaz num hospício. Pode ser o Paulinho.

Encontrei-o pela primeira vez em 1993. Num dia de estágio de Saúde Mental e Psiquiatria nas Brancas.  Primeiro vi as marcas do que fizera. O capot de um carro danificado no exterior do edifício. A coordenadora de estágio sorrira ao meu grupo e desculpara-se “foi o Paulinho, está tudo bem, não se assustem, foi só o Paulinho”.

Soaram dentro de mim as campainhas de alarme. Quem seria o Paulinho? Quem seria aquele ser que danificara a viatura? Porque o teria feito? Em que condições o teria feito?

As perguntas martelavam a minha mente, mas logo deram lugar à necessidade de dispensar atenção para o grupo, o local, os corredores por onde acabava de entrar, as salas que escancaravam portas e deixavam antever doentes que olhavam vagamente, através das janelas, as copas das arvores do pátio. Gente que estava ausente, gente que apenas ali tinha o corpo, qual âncora mantendo-os presos a este mundo. As mentes, essas, vagueavam, que eu bem podia ver-lhes os olhares vazios. Vazios e distantes a fazerem-me lembrar papagaios de papel soltos no ar, voando cada vez mais alto, como aqueles que em criança havia segurado tantas vezes para que não se perdessem entre as nuvens. Esqueci-me do Paulinho. Não para sempre. Esqueci-o apenas por momentos, aqueles momentos que me permitiram observar as paredes brancas do hospital, o ar desolado das salas, os frios corredores, o soalho rangendo à nossa passagem.

A meio do percurso, o Paulinho voltou sob a forma de vidros estilhaçados. Soube-o pela coordenadora que, mais uma vez, acusou: “Foi o Paulinho. Mas não se assustem, está tudo bem”.

Na minha cabeça o Paulinho ia tomando forma. Imaginava-o um gigante, os ombros largos, andar desengonçado, o passo largo, o olhar ameaçador.  Sim, devia ser assim o Paulinho.  Alguém perguntara como fazia o Paulinho todo aquele estrago, e ao longe, transpondo a minha imaginação que acabara de pintar o retrato fresco do Paulinho, ouvi mais uma vez a voz da coordenadora que lamentava a sua sorte “tem surtos. Dá cabeçadas onde calha, sobretudo nas paredes, nos móveis, onde calha, talvez como forma de se punir ou de se sentir presente…”  

Ficámos todos em silêncio e acredito que durante os breves segundos que durou aquele silêncio, cada um de nós pintou o retrato do Paulinho. Como seria o Paulinho deles? O meu era aquele homem gigante, de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Dou mais umas pinceladas na minha pintura e acrescento-lhe um fio de baba que lhe resvala do canto esquerdo dos lábios, entreabertos numa espécie de esgar…, a ameaça de um sorriso, um sorriso sinistro.

Os passos que se aproximaram de mim, pelas minhas costas, não me tiraram logo do torpor. Ainda fiquei assim, quieta, a observar sem ver os colegas que circulavam pela sala, porque quem eu via era o Paulinho, apesar de que também não o via com os meus olhos físicos. Mas eis que, passos cada vez mais próximos me despertaram, e um calafrio que me percorreu a coluna, denunciou a chegada do Paulinho, o Paulinho verdadeiro e não o que eu pintava na minha cabeça.

Olhei de esguelha. Tão de esguelha que mal o vi, embora, eu quase pudesse jurar que ali estava o homem da minha imaginação.  Claro que aquela mecha de cabelo caída sobre a testa, a cabeça inclinada, o andar apressado, só podiam indicar que ele vinha com tudo para cima de mim. Preparava-se para fazer às minhas costas o que havia feito ao capot do carro, preparava-se para fazer-me a mim o que havia feito aos vidros das janelas, aqueles vidros que jaziam ainda, estilhaçados, no chão frio do corredor. Estremeci e gelei, enquanto tudo à minha volta parecia ter congelado também, como num loop, uma paragem do tempo. Só o Paulinho continuava a mover-se na minha direção. E sim, tive medo, tive um medo que nunca havia sentido antes, medo de não saber lidar com a situação, medo de não saber lidar com o Paulinho, medo de que ele  me magoasse à séria, medo de que ninguém o conseguisse parar…como podia eu parar o Paulinho se ele era um gigante, de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador?

Instintivamente, encolhi-me na esperança de assim lhe dar passagem sem que ele me tocasse. E o Paulinho passou pela soleira da porta sem me tocar. E a sua passagem, foi como um passe de mágica que fez o tempo voltar a correr. As pessoas à minha volta tornaram a circular pela sala e a falar, e a olhar, a comentar, indiferentes à presença do Paulinho, indiferentes ao medo que eu havia acabado de sentir, indiferentes aos batimentos ruidosos do meu coração, indiferentes ao tempo que para mim, havia parado.  O Paulinho seguiu, atravessou o grupo que se espraiava pelo espaço e desapareceu num corredor escuro que se esticava no interior do edifício. Não voltei a ver o Paulinho, mas o Paulinho nunca mais me abandonou. Em todos estes anos de formações relatei este episodio aos meus formandos, sem omitir detalhes. Descrevi o Paulinho vezes sem conta, o gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador, que nunca deixara de me assustar e, de cada vez que eu contava esta história, o Paulinho que já era gigante, ficava ainda mais gigante, e o Paulinho que já era ameaçador ficava ainda mais ameaçador.

 

O Reencontro

2020 /Minde

 

Faço o meu curso de especialidade e há que falar da experiência, da bagagem que trago comigo em tantos anos de trabalho. Não posso falar do meu percurso em enfermagem sem falar do Paulinho. Sem contar mais uma vez, a novos ouvidos que me dedicam uma velha atenção e escutam, avidamente, a história do doente mental que marcou para sempre a minha vida.

E é então que alguém interrompe o meu relato, com um entusiamo que eu desconheço e me dá a boa nova: “Esse Paulinho de que falas, sei quem é. Está aqui.”

“O Paulinho? O Paulinho está aqui?” Finalmente eu sei o que é o espanto emaranhado em estranheza…, quais são as probabilidades? Quantas vezes terá o universo lançado os dados até sair este número perfeito, o PI, a Proporção Áurea, a Capicua, o Jackpot? Haviam-se passado mais de três décadas e o Paulinho, para além de ainda permanecer no mundo dos vivos, havia transitado para outro hospital, precisamente o hospital que eu visitava agora.

Como numa pelicula de um filme dos anos 20, mudo e de imagens riscadas, revivi por breves segundos aquele momento em que os passos do Paulinho, nas minhas costas, me roubavam ao torpor da imaginação, uma imaginação que era como uma aranha tecendo a sua figura com fortes fios de aço. Indestrutíveis. Eu tinha que vê-lo. Tinha que olhar uma vez mais para aquele gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Tinha que vê-lo. E vi. Entrei num quarto quase despido e encontrei um homem de olhar vazio, um homem que estava ausente.  Um homem papagaio de papel, perdido entre as nuvens.

Mas aquele não era o Paulinho que a minha mente havia criado. Não era o gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Era apenas um homem. Um homem pequeno, até. Franzino. A cabeça, agora com as marcas de todas as cabeçadas que dera onde calhava, sobretudo nas paredes, havia ganho uma estranha forma achatada como uma planície, esquadrinhada de cicatrizes como  campos de cultivo.

Não havia um fio de baba a resvalar-lhe do canto esquerdo dos lábios e não havia esgar, nem qualquer ameaça de sorriso sinistro. Nada no Paulinho era sinistro.

Não falei. Nem esperei que ele o fizesse. O Paulinho era um homem ausente. Da sua boca ninguém ouvia uma palavra há anos, e nada nos seus gestos havia sido, em décadas, qualquer prenuncio de interação. Nem uma sugestão. Nada. O Paulinho era um homem ausente. Sentei-me, silenciosamente, ao seu lado e deixei-me ficar ali, mais uma vez rendida ao torpor dos pensamentos e, naquele momento, mais do que ao torpor dos pensamentos: ao torpor das recordações. Aquele era o momento em que o Paulinho passava por mim na soleira da porta e eu gelava. Era aquele momento, aquele preciso momento que havia ficado gravado, indelével, na minha mente.

Era aquele instante, aquele preciso instante, tão injusto como a condenação de um inocente, a ocasião em que eu permitira à minha mente fazer do Paulinho um monstro, um monstro que habitara comigo por tantos anos, e que eu queria destruir agora.  Pedi-lhe perdão.  Senti o perdão a fluir nas minhas veias e senti a gratidão de poder estar ali, ao seu lado, devolvendo-o ao homem que ele era realmente. Ao ser humano que ele era, realmente.

E o inimaginável aconteceu. A minha mão, que eu tinha abandonado sobre o meu colo, sentia agora outra mão sobre ela, a apertá-la gentilmente. A mão do Paulinho. 

O tempo voltou a congelar, não havia qualquer movimento ao redor, apenas os olhos daquele homem ausente que retornavam à vida, como se os meus olhos fossem as mãos da criança que segura o fio do papagaio de papel e puxa para baixo. Os olhos do Paulinho pousavam finalmente nos meus, tal como antes a sua mão havia pousado sobre a minha. Aquele homem ausente tinha regressado. Aquele homem já não era um homem ausente. Estava ali, pleno, num regresso inesperado, mas consciente, dizendo-me com um olhar que era afinal doce, tão doce, que sim, me perdoava. Entendi-o finalmente. Às vezes temos medo. Do desconhecido. Às vezes julgamos conhecer o desconhecido e temos medo. O desconhecido pode ser uma imagem parada na nossa mente. Nublada. Ensombrada. Na penumbra. Pode ser a noite que é a penumbra mais densa que conhecemos. Ou pode ser o escuro. O vazio. O medo pode ter muitas formas. Pode ser um rapaz. Um rapaz num hospício. Pode ser o Paulinho.


Ana Kandsmar

(uma história vivida na 1ª pessoa pela enfermeira especialista em Saúde Mental, Graça Rito)

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