Negócio da China


Já lá vão alguns anos. Quantos? Um? Dez? Cem? Mil? 
Tantos para tão pouco que dura uma vida. Demasiados, com excessivos fins e recomeços, uma miríade de dias em que te esqueço e volto a lembrar. 
Experimenta somar o cansaço dos meus ouvidos à escuta, na mira de um suspiro teu, de um relance foragido, de um sopro. 
Conta-me as palavras que em troca se enredaram na parcimónia das tuas. Salva-me das memórias brumosas em que me afundo e me vejo fantasma de um pirata no nevoeiro, sem rumo. 
Adivinha-me os quereres solitários e atenta no que percebo de nós dois em tanto tempo. Que não te engane o meu palmilhar insistente nas linhas da tua pele. 
Nunca perdi a noção risível do quão patético é o amor de um só lado. Contudo, ele foi inevitável, arrebatador, e ainda assim incumprido no seu silêncio emparedado.
Já lá vão afinal, quantos faz de conta? Quantos fingires de que há tanto em nada? 
Quantos simulacros de madrugadas a dois, diálogos inventados, mãos a tocar o vazio? 
Já viste? Em todos estes anos, as nossas vidas correram como as águas dos rios embravecidos pelas cheias, e transbordámos tantas vezes o que nos sobrou dos dias em que não nos tivemos. 
Reparaste alguma vez, como me deixei atulhar de tanto, de como procurei encher-me de quotidianos desiguais, mil afazeres, trabalhos de fio a pavio, cantar, escrever, respirar,cuidar, musicar, andar, noticiar, pesquisar, respirar, escrever, cantar, cuidar, andar, cansar, cansar, cansar? 
Coisas banais, chatices a mais, toda eu cheia de mundos diferentes, gente diferente, homens diferentes nos antípodas de ti. De nada adiantou. Um ano, dois anos, nove anos, nunca deixei de te lembrar a textura dos cabelos, as pestanas enormes, a curvatura do sorriso. Nunca deixei morrer o teu nome na minha garganta nem de te fazer caber inteiro dentro de mim. Sem vergonha nem pudor, digo-to. 
Digo-te assim mesmo, desta forma dissimulada, como o são os falsos inocentes: Romanceio-te em pequenas crónicas deste amor desavindo e emolduro-te em fileiras de sinónimos e palavras caras, porque … cara me foi afinal a tua vida na minha. 
Paguei-te a preço de ouro, com os anos que passaram por mim a rirem-se da minha distracção. 
Paguei-te com juros mais correcção monetária, noites em claro e sonhos diurnos com futuros impossíveis. 
Paguei-te primeiro e dei-te depois de bandeja. Percebo-te agora, um risco mal calculado uma queda da bolsa, acções sem valor. 
Descapitalizaste-me afinal, por tão pouco. Devia ter-te adivinhado gato por lebre, sabes? Investi afinal muito no que podia ter-me calhado uma pechincha, negócio da china, tuta e meia. E é por isso que te digo: Ainda me vais devolver tostão por tostão, cada beijo, cada carícia, cada pedaço de vida que se fechou atrás de mim. 
Saberás que te custo também os olhos da cara, quando não suportares que te olhe com a estranheza e a perplexidade dos indiferentes, como se olha um maluco desdentado que nos pedincha um cigarro na rua.


AK
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