O Rio do Medo
Vamos ao deserto, rapariga.
Vamos àquele lugar inóspito onde de um lado e do outro da estrada há ervas daninhas que comem os caminhos e invadem o alcatrão.
Vamos à rua estreita onde mal passa um carro e as botijas de gás se acotovelam nas soleiras das portas.
O lugar onde os vizinhos se amam e odeiam em simultâneo e te conhecem do tempo em que levavas a bilha de alumínio à tia Celeste e a vias ordenhar a vaca com as mãos roxas e as pernas a tilintar de frio.
Vamos e esta noite não fumarás. Cigarro atrás de cigarro. Até ficares com a boca seca e a cheirar a estrebaria. Um odor acre de mijo de caprinos ao acordar.
Esta noite não beberás. Nem martinis. Nem copos de whisky com duas pedras de gelo. Nem copos de vinho.
Esta noite não ligarás o pc. Deixa-o dormir na quietude fria da noite que é o animal de estimação da casa que te viu nascer.
Esta noite não escreverás. Em sítio nenhum. Só deve escrever quem sabe. Ignorarás a brasileira que vive ao fundo da rua e que não conhece outra língua que não a vernacular, desprezarás a prima com olhos pequeninos e gelados, olhos de bruxa que te esconjuram, enquanto fazes figas com as mãos dentro das mangas, borrifar-te-ás para a mulher albina que se ri como uma hiena, também ela de olhar simiesco e que te enche a chávena de borras em vez de café.
Esta noite lerás. Se não houver mais nada lerás a Bíblia, mas lerás. Na estante que suporta a infindável coleção de banda desenhada ainda há-de descansar o livro de capa dura que te fala da Índia. O livro que te conta a história do homem que acabou a salvar meninos de morrerem afogados nas monções. E que fazia corridas de riquexó nas ruas de Calcutá. E que se apaixonou por uma puta com lepra. E que doava sangue em troca de chamuças a tresandar a caril.
O livro que tem pessoas e frases inacabadas lá dentro. E que tem a dor das mães que perdem os filhos e as dores que a fome não come, mas alimenta, e a dor das crianças perdidas no turbilhão da cidade, e a dor do desconhecido, aquela dor que infeta por dentro e paralisa. A dor que o medo provoca. A dor que dá cegueira e coloca armas nas mãos de homens cegos. O medo de não se ver o que há do outro lado da porta.
Hoje vais ler. Vais ler para te lembrares que há dores maiores que a tua, que há dores que são inimagináveis, dores que nem o escritor põe no livro por não sabê-las, e porque mesmo que as lesses não as saberias.
Esta noite, esquecerás a brasileira, a prima e a mulher albina. Darás um beijinho à avó antes de ela dormir, e, rezarás para que Deus ainda a acorde na manhã seguinte. Depois, respirarás o ar frio da noite que atravessa as paredes caiadas e lerás sobre quantos Deus não acordou e que sorte, por isso, eles tiveram."
AK

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