O voo dos condores

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Não sei se escrevo por gosto, necessidade ou se por vaidade. Talvez o faça por todos esses motivos e outros que não fui ainda capaz de descortinar. Acima de tudo, acho que escrevo para me esvaziar. É a minha forma (quem sabe?) de me ir matando aos poucos como se de um golpe na ulnar se fizesse a escrita e o meu sangue jorra-se criando frases com os meus fluídos, textos com as minhas vísceras e livros inteiros com várias partes do meu corpo. 

Descarto-me assim de coisas minhas que já não quero a morar em mim. Histórias grandes, extensas, complexas, cenários, personagens que vivem através de mim o que me cabe apenas imaginar. Crio universos que dependem do meu punho para que não fiquem eternamente desabitados. 


Escrevo realidades e misturo-as com sonhos, quimeras, mundos apocalípticos, renascidos, que me soam ao canto das sereias e me desafiam a viver neles.

Escrevo sobre a folhagem seca que cobre os caminhos do Parque no inicio do Outono, sobre a escalada íngreme até ao cume do Atlas, a cordilheira dos Andes e o voo dos condores, o calor sufocante do Alentejo, a bela Liége e os seus aquedutos, os assobios do vento nos temporais, os gritos contidos nos velórios, as manhãs cobertas de nevoeiro, a ponte a serpentear sobre o Tejo, a minha India tão linda, tão colorida, o meu amor hindu, a minha Goa, a minha Varanasi, a minha…vida.

Escreverei outra vez um livro. Outro que me obrigue a renascer nele. Um outro que tenha uma capa resistente ao descuido das mãos, orelhas com a minha biografia, a minha foto a preto e branco a fugir os olhos à objectiva. Escreverei um livro cujas páginas sejam almas de criaturas vivas e as letras bem visíveis terão notas de rodapé a bold, como prenúncios do luto na última página. 
Quando olho para o meu livro, (aquele que já escrevi),no meio de todos os outros na minha estante, vejo um pequeno livro de folhas brancas. Todos os outros têm folhas amarelas, um amarelo velho, quase fazendo parecer que as suas páginas são sujas, encardidas por dedos que os folhearam, virando as páginas uma a uma. Encardidos pelo pó acumulado dos anos. O meu não. O meu livro tem letras pretas em páginas brancas que me fazem lembrar mosquitos mortos sobre a neve. O meu livro branco imaculado, parece intocado, nunca lido. Escreverei outro livro. Um de páginas encardidas. Nunca mais quero escrever um livro branco.

AK

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