Pretéritos (im)perfeitos

Sei que já não me escrutinas com a mesma frequência. Quero dizer…não sei. Sinto-o. Adivinho que entretanto, deves ter sucumbido aos novos rituais nórdicos: os passeios pela Marktplatz, talvez o café no Podium e o prazer das pedaladas matinais ao longo das margens do Kocher. E isso tudo eu até entendo. Existe para além de mim todo um mundo novo que não se coaduna com pretéritos (im)perfeitos. Mas eu avisei-te. Avisei-te, lembras-te?
Naquele mesmo dia em que nos dissemos adeus pela milésima vez, fiz-te notar a tua total incapacidade para te afastares de mim. Ou me afastares de ti. Não importam as distâncias. Nem de quantos quilómetros se percorrem para se estar ao lado de quem nunca sai de dentro de nós. Percebi-o quando me dei conta de que já não tenho medo que fiques. Sou irremediavelmente sensível à beleza e tu és belo, como um deus grego. De que é que isso te valeu? De tanto e de nada. Estamos quites. A mim também me valeram de tanto e de nada os meus suspiros e angústias, as saudades que tantas vezes se transformaram em pedinchice de um corpo em falta, de mera leviandade hormonal.
De músicas completas, estrofes de métrica cuidada sobrámo-nos refrãos. Do vigor compreensível dos diálogos, ficámo-nos primeiro mudos, depois monólogos, entretanto um livro de mil páginas que abandonámos a meio do terceiro capítulo. Sabes do que é que eu tenho medo? De me apetecer para sempre a tua imagem.
Receio não conseguir olhar para outro rosto sem querer descortinar nele os teus traços, ou o arco harmonioso do teu sorriso.
Lamento a constatação do quanto é exíguo ter-te para o puro prazer da vista mas tão longe do toque.
Não te quero como uma escultura ou um quadro, que admiro e revejo do ângulo que me apetece. E tu? Como me queres tu? Basto-te uma imagem parada onde não descobres nada de novo a cada vez que me vês? Como é que nós, que nos aborrecemos de morte nas rotinas, nos tornámos um para o outro meras rectas sem desvios, tão determinadas quanto previsíveis?
Logo nós que já nos demos a conhecer os nossos mundos novos: as nossas cabeças superhipersónicas.
Confundimo-nos tantas vezes e em demasia com as nossas piruetas mentais, as exasperantes contradições e os excessos emocionais. Logo nós que já nos perdemos nos nossos labirintos interiores, - eu no teu e tu no meu - de tantas voltas que ficámos tontos e incongruentes, incapazes da repetição dos gestos ou de um amor que é sempre igual todos os dias… nós que vibrámos pelas reacções inesperadas, livres da dormência e do tédio, somos hoje o quê? Fantasmas risíveis que se provocam mutuamente enquanto decepam a esperança, a memória e a possibilidade?
Somos afinal o quê? Em que é que nos tornámos para além do querer e não ter, o agora sim mas afinal não, a devolução da disfuncionalidade que plantámos um no outro como uma semente negra, uma cruz do avesso pendurada na parede?
Podes até calcorrear extasiado as ruas cobertas de neve da Marktplatz, podes maravilhar-te com os V(ês) invertidos dos telhados, o espelho de água que se alonga no decurso do Kocher… Nenhuma dessas novidades destronará o único hábito que suportas afinal que te corra no sangue: Eu. Nós.
Queremo-nos ainda amantes porque é no amor que nos temos que reside a nossa fraqueza e o nosso poder. Agora diz-me… porque é que deixámos de o ser?
AK
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