Aqui, à noite, há pirilampos

Fomos jantar. Era verão. Ao longo da estrada vislumbrávamos vaga-lumes a enterrarem-se na folhagem das ervas altas que delimitavam o alcatrão. Contornámos a rotunda, a conversa no interior do veículo animada e casual. Ele ria-se das minhas piadas, como quem está suficientemente tranquilo e descontraído para lhes encontrar uma nuance de humor, retorquia, quase sempre começando com "well, you are a little bit crazy, you know?" 
Depois dissertava de novo sobre as suas paixões, o que o movia, o que lhe dava ânimo para respirar os dias. Projectos. Tinha vários. Montes deles. Nem que fossem as viagens que ainda queria fazer e eu pensava para os meus botões: " tem 85 anos, de onde lhe vem tanta energia?" Bom, talvez a vida lhe tivesse ensinado que não basta olhar, é preciso ver, que não basta sentir ao de leve, como as brisas que nos passam a fazer cócegas na pele, é preciso estremecer, vergar aos vendavais para depois voltar a ficar de pé, enrigecer, tomar parte do caos e vibrar com ele, com o que de mau e de bom ele é feito, a fealdade e a beleza do caos, as tempestades que ele é capaz de criar dentro de nós; cair e levantar; ganhar raízes e asas em simultâneo; chorar, chorar muito, limpar o ranho com as costas das mãos e gargalhar de seguida. Gargalhar das tristezas, das decepções, das desgraças, enfim, escarnecer da dor. Ele parou o carro em frente de um tufo de relva, inclinou-se no assento, olhou-me nos olhos como se medisse a minha atenção ao que ia dizer a seguir. Estava agora sério. Vislumbrei-lhe uma gota pequenina, como um diamante, a ganhar caminho sobre a face e senti um aperto estranho. Uma espécie de premonição. Antes de ele falar já eu lhe tinha ouvido as palavras, ou pelo menos podia jurar que as tinha ouvido e por isso, quando lhe ouvi a voz a enunciá-las, recebia-as sem surpresa, como um dejávu. "the cancer returned". Silêncio. Virei o rosto para o vidro, e apontei os olhos para a placa do restaurante, onde se lia "aberto"."Did you hear me?" Agora a voz dele entrecortada, como se tremeluzisse, como tremeluziam as letras de neon na placa. A-B-E-R-T-O. "Is it very serious this time? As serious as the first?" Perguntei antecipando o murro no estômago. "Worse. I do not have many chances". O murro acabava de ser desferido. Doeu. Encolhi-me. "And what will you do?". "Fight. Fight until my last breath. I do not want to die, Cristina." E começou a rir. Gargalhou, gargalhou, como se tivesse acabado de escutar a melhor piada do mundo. Gargalhou. Como se escarnecesse da própria dor."


Ana Kandsmar

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