"Travessia no Deserto"

Resultado de imagem para travessia no deserto

Há tempos que não me sai uma letra. Volta e meia sinto as palavras à beira do vómito, a saltar cá para fora, sujando-me as folhas com a impiedosa dose de saudade avinagrada. Volta e meia lembro-me do que me era a vida antes de ti, da vida durante e enlouqueço a pensar na depois. 

Em que momento é que as coisas mudaram? Qual foi o momento exacto em que entrei neste vórtice destrutivo que parece empurrar-me para um buraco negro sugando-me todas as coisas boas que ainda me restam? Pois eu vou contar-te: Tenho dias em que te sinto a falta, e toda eu me sinto em perigo. O coração pula-me no peito enquanto me pergunto onde andarás. Será que te sentes só? Eu sinto-me tão só como quando nos afundávamos no nosso silêncio e nos ignorávamos mutuamente. Esse era o durante. Sempre fértil em silêncios infelizes, mas no durante, a tristeza desses silêncios fazia-me feliz porque te sabia ali. Estavas comigo mesmo não estando e a tua ausência acompanhava-me. 
Nunca te disse que o durante foi infinitamente melhor que o antes, pois não? Antes de ti eu sabia o que era sentir a alegria, mas não sabia o que era sentir o Amor. Antes de ti eu conhecia muita gente mas não te conhecia a ti. Antes de ti eu lia poesias, mas não tinha lido o teu olhar. Antes de ti ouvia músicas, mas não ouvia a tua voz. Antes de ti eu vivia, mas foi durante que amei viver. 
O depois de ti é uma travessia penosa pelo deserto. Transformaste-te numa carência que me bate em dias incertos e dóis-me como uma moinha. Ela arrasta-se comigo por onde quer que eu ande e incomoda-me como a dor que se me mete nos ossos a prever dias de chuva. Corro perigo, porque se estivesses perto não resistia ao impulso de ir ao teu encontro. E de novo, parva, ficar-me-ia à tua frente, muda como uma noviça em retiro espiritual. Ansiosa como uma criança em noite de Natal. Nervosa como uma adolescente à beira de um exame. Acabaria por dizer-te, olhando-te nos olhos, como sempre fiz: Tenho saudades. E mentir-te-ia mais uma vez, porque não tenho. Os dias em que corro ao teu encontro, ou como hoje, os dias em que gostaria de correr, são apenas aqueles em que sozinha não aguento os ruídos da cidade.
São ímpetos estúpidos em que preciso de ver a tua miséria para relativizar a minha, percebendo por fim, que o teu poço é mais fundo que o meu.
Pergunto-me se também eu ainda te doo, se esta moinha que me aborrece também te importuna a ti, se também tu tens o mesmo impulso imbecil de vires ao meu encontro para te deteres por fim à minha frente à espera que eu quebre o silêncio. Ainda terás essa ferida que eu, com a acutilância do tanto que te disse, fiz, ou já cicatrizaste?
Sim. Ainda espero um milagre ou a obra do diabo. Rezo a Deus e ao demónio. A um, para que me ignores ou desprezes ou esqueças. Que faças talvez as três, tanto faz que em simultâneo ou uma de cada vez,ainda que não necessariamente por esta ordem. A outro, para que retornes são e salvo como um soldado que escapou da guerra ou um náufrago que sobreviveu à tempestade. Não sei qual dos dois me ouvirá ou qual das vontades me será feita. Mas, secretamente, que nem para mim o admito, torço para que o Universo conspire o teu regresso mesmo que isso signifique que voltaremos a ser como dois pedintes, ambos sem abrigo, num amparo mútuo para fugirem à frieza da vida.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Perdição de D. Sancho II, Paulo Pimentel