Vindimas


É Setembro, mês das vindimas. Desde o primeiro dia até às adiafas, levantamo-nos de madrugada. A mãe grita do cimo das escadas para o corredor, “toca a levantaaaar!” repete-o com uma voz que lhe trepida pelas cordas vocais e eu estremeço, ainda metade de mim imersa no último sonho. 
Ainda não amanheceu. Vejo estrelas quando descubro o rosto antes tapado pelos cobertores, e a pequena janela, cujas cortinas se abrem em par, mostram-mas de um amarelo vivo, aos montinhos no céu ainda escuro, a brilhar como se pirilampos a esvoaçar por entre o negrume. As temperaturas já começaram a baixar e o meu pequeno quarto é como a exígua prateleira de um frigorífico. 
Volto a tapar-me, enrolo-me mais um bocadinho. Só mais um bocadinho. “Toca a levantar!”, de novo a voz da mãe que faz eco pela casa e as palmas, as irritantes palmas da mãe, que me marcaram para sempre os acordares. É tão desagradável acordar. A vida depois disso é tão desagradável. 
O café de borras a fumegar numa caneca de asa partida, a fatia do pão com margarina, que a manteiga é cara e não se pode comprar, os pés enfiados em botins enregelados, calças do dia anterior, ásperas, sujas de terra e ervas amassadas. “Toca a levantar!” ela grita-me e eu levanto-me estremunhada. 
É tão desagradável acordar. A camioneta que sulca os caminhos de terra batida, balançando como uma pequena embarcação em alto mar, as tesouras peganhentas, baldes sujos de mosto, as conversas sem sentido, sem nada, sem ponta por onde se lhes pegue, um comentário jocoso, logo ali ao alvor do dia “ Ó menina, abre-me os olhos! Parece que ainda vens a dormir!”, e as gargalhadas “coitada da pequena, não sabe como a vida é dura”. 
Eu sabia. Caraças, se sabia! 
Os miúdos que cavalgavam aos domingos em cima das suas bicicletas mostravam-mo. Eu queria uma bicicleta, Não, exactamente igual à deles, podia ser pior, menor, mas teria que ser uma bicicleta que não me envergonhasse. E comprada por mim. Com o meu dinheiro. Dinheiro ganho a custo, dobrando o meu corpo frágil por detrás das cepas, as costas, ah, como me doíam as costas!
 E depois subia a encosta, alagada em suor e pernas bambas, o cesto à cabeça, sobre um pescoço que prometia dobrar-se a cada passo a resvalar nos torrões de terra, a tropeçar nas silvas que se esgueiravam da serventia, e deixava para trás o vernáculo dos adultos, o gargalhar sujo a esforçar-se por dar cor aos dias. “Ó Rosa, tens de tratar do teu home! Olha que ele diz que já nem levanta o pau!”, e, do meio do gargalhar ainda ouço a Rosa que se esganiça para lhe ouvirmos a voz: “e eu lá ralada! Tem língua e dedo!” Subo pela última vez o escadote de madeira, inclino a cabeça, tombo o cesto sobre a tina que faz cagote, e é chamariz de abelhas. 
São cinco da tarde e o capataz grita "Desapegaaaar!!”, o pessoal agita-se pela encosta e eu sigo-os na caminhada. Por breves instantes, faz-se silêncio e eu cristalizo, pedalando na bicicleta que há de ser minha quando aquilo acabar. Só mais uns dias. Depois, acordar há de ser mais fácil."


Ana Kandsmar




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