Conto- A Teia




****1

O que aconteceu na infância não fica na infância. Segue-me. Corre atrás de mim e apanha-me sempre que paro no caminho. Uns segundos. São só uns segundos de paragem. Para ver o meu rosto. As linhas do meu rosto. Não foi sempre assim. Antes a pele era lisa e não sulcava como um rio seco, quase sempre seco. A minha pele está seca. Antes era lisa e suave como a seda e eu construía-me. Com o quê? Com o que é que me construí? “ Tu, não prestas para nada.” 

Olho para um ponto escuro. Olho-o. Flutua no ar no meio do nada. Nunca te sentiste assim? Uma bola feita de negrume a contrastar com a luz do luar, ou com a luz dos candeeiros da rua?

Havia um banco. Mesmo em frente da casa. Eu sentava-me lá a pensar na minha pequena vida. Era tão pouco tempo ainda. Tinha uma boneca que se chamava Nicole e um cão perdigueiro que me ensinava a gentileza dos animais. Os olhos dele brilhavam como berlindes debaixo do sol do meio-dia. Se eu chorava ele chorava. Ensinou-me a solidariedade dos animais. A empatia dos animais. Na ponta do banco, à espera do primeiro grito da mãe que me chamava para entrar, talvez para uma nova reprimenda, os pés quase em pontas, “ se ela chamar levanta-te. Levanta-te e vai logo”… Se não chamava, eu ficava. Ficava sentada na ponta do banco. O cão perdigueiro a lamber-me as mãos e eu a sorrir-lhe cúmplice, sentada na ponta do banco. Agora sabia o que procurar, e onde procurar. Lá encontrava, todos os dias, sem excepção nem grande esforço, aquele ponto negro na face da escuridão. Sabia bem o que era. Sobre isso, estaria mesma disposta a arriscar o que quer que fosse. Até podia arriscar a vida. Não me importava de arriscar a vida. “ Tu, não prestas para nada.”

Apesar da possível poesia ou sublimidade da constatação, a verdade era simples. Aquele ponto escuro a flutuar no nada, como uma nave espacial, era uma memória qualquer que me vinha. A origem. Nunca te perguntaste qual é a tua origem?


****2

A minha origem é uma espécie de aranha. Aquele ponto escuro é apenas a aranha no centro da minha vida, no meio da minha teia. Sabias que as teias são invisíveis quando as enxergas de longe? A teia é a nossa mais eficiente arma e armadura. Nela nos balouçamos, quando é o caso da vida nos soprar ventos. Vacilamos, não é? São os ventos. Por vezes detemo-nos imóveis a tentar adivinhar a aproximação das presas. (As tais oportunidades que nos aparecem e precisam da nossa máxima atenção para darmos por elas. Para as aproveitarmos.) Às vezes também nos detemos para nos protegermos dos predadores. De certa maneira, és um predador. Sempre foste. Defendi-me fazendo silêncio. Às vezes o medo paralisa-me. Outras vezes, faz-me andar sobre a minha teia cautelosamente. É preciso evitar nós desnecessários. Às vezes também é preciso dormir sobre a teia. Talvez meditar. Enredo-mo nela como ela se enreda em mim, num emaranhado de fios e enleios. Nisso, a aranha é de longe, mais bem-sucedida que eu. A sua rede é de segurança, de máxima segurança, enquanto que a minha é um labirinto. Um enleio confuso. Tantos nós e confusão. “ Tu, não prestas para nada.” Gostava de tirar isto a limpo. Porquê eu? Que fiz eu para não prestar para nada? Apenas nós e confusão. A aranha depende apenas de si própria. Pode perder uma presa, ou várias, passar fome durante dias, ver a sua teia destruída, - algum homem. Mais ninguém destrói a não ser o homem. Algum homem que diz à aranha: “ Tu, não prestas para nada”. Apenas uma besta como o homem. Só o homem diz a outro : “ Tu, não prestas para nada”. Diz-lhe quando nasce. Quando cresce. Quando tem 4 ou 5 anos, quanto tem 7 ou 8. Diz-lho na infância e o que acontece na infância nunca fica na infância. Persegue-nos. Corre atrás de nós e apanha-nos assim que paramos no caminho. É só uma curta paragem para descansar e…pimba! Já está. “Tu, não prestas para nada”. Foste apanhada. Tinha parado apenas para ver o meu rosto. As alterações no meu rosto. O meu rosto sulcado por linhas finas que antes não estavam lá. “ Tu, não prestas para nada”. Apanhou-me. Nem vento nem chuva seriam alguma vez inimigos à altura do meu belíssimo, intrincado e resistente macramé. Mas tu não és o vento nem a chuva. Se o fosses, no segundo seguinte eu determinaria, sem rancores ou lamentos sempre tão inférteis, recomeçar tudo de novo. Não és. E por ti, foi-me impossível recomeçar de novo. Fi-lo vezes sem conta, à pála da destruição causada por outros inimigos. Sem lamentos nem rancores recomecei tudo de novo. Só não o fiz, quando foi a tua habena sobre o meu corpo. E tu? Quantas vezes, sem lamentos nem rancores, recomeçaste tudo de novo? Com igual fervor, com equivalente fé e resiliência?

**** 3

Se fosses chuva ou vento, de agulhas de croché em punho, eu lá rendilharia o meu mundo e, num ápice, voltaria a instalar-me. E pararia. Pararia para olhar o meu rosto, para confirmar a simetria do meu rosto, e os sulcos na minha pele, às vezes rios, às vezes deserto inóspito. Sem medo. “Tu não prestas para nada”. As tuas palavras seriam apenas miragens no deserto. 
Neste pedaço de noite entre os ramos da árvore da vida, alargo ao máximo a minha área de acção, o meu território de caça. Porquê eu? Porque é que eu não presto para nada?

Não sei muito bem porquê, muito menos explicar a razão do ímpeto tão a despropósito, mas tu, o homem que me observa e secretamente inveja a minha autonomia, vê-me também assim, um insecto. “Tu, não prestas para nada” é mais do que uma frase. Mais do que um emaranhado de palavras. Uma teia de palavras. Uma teia perigosa. Fiquei presa nela. Fiquei presa nas palavras. “ Tu, não prestas para nada” é também o teu pé veloz sobre o meu corpo. Espezinhas-me. Eu tinha 4 ou 5 anos. Talvez 7 ou 8. Depois,9, 10….Por aí afora. O que acontece na infância nunca fica na infância. 
Disposto a ridicularizar-me, a assassinar-me, levantas-te sem hesitações de dúvida, agarras no cinto que trazes preso às calças e sacode-lo, às cegas. Sou surpreendida pelo som seco do baque, resultante da batida certeira do couro ágil contra o meu corpo. Sou surpreendida pelo som seco das palavras que fizeram eco e chegam aqui ao outro lado da vida, tantos anos depois. A outra margem. Foi como se tivesse atravessado um rio. O rio no meu rosto. 

O som audível que me leva a questionar sobre as possibilidades. “ Tu, não prestas para nada”. Serei eu uma aranha bem maior e mais robusta do que imaginei? Não obstante, poderei ainda tornar-me um corpo flutuante apenas visível para olhos treinados a ver aranhas no escuro? Tu não és hábil o suficiente para ver aranhas no escuro, pois tu não sabes nada sobre aranhas, apenas o que foste ouvindo nas conversas de café. Surpreende-te agora que a minha morte seja audível, sonora e arrepiante. A sério? Porquê a surpresa? Não era o que sempre dizias? “Tu, não prestas para nada”. Mas não foste sempre tu que… sempre…Foi um vaticínio. Tinhas razão? Logo tu, que queres ter sempre razão e não admites que alguém te mostre que estás errado….Muito menos eu. Eu nunca pude mostrar-te que estavas errado. Não estavas. Tinhas razão.

****4

Não sei se podia ter impedido que me acertasses. Com as palavras. Muito mais que com o cinto que libertaste das calças. A tua arma mortal foram sempre as palavras. Se tivesses usado uma pistola e com ela tivesses disparado uma bala certeira sobre a minha cabeça, não me terias mais morta. A bala teria esvaído o meu corpo do sopro da vida, mas a minha alma continuaria intacta. As palavras não. As palavras matam o que está dentro. Matam a essência. Matam a alma. Hoje o meu corpo está vivo, mas sou um corpo sem alma.

Imagino que se não me tivesses acertado, o som teria sido apenas o da ponta do cinto a roçar um qualquer ramo em que não tinhas reparado. Esta segunda possibilidade não te convenceria. “ Tu, não prestas para nada”. O teu desejo entendia que o som assim verbalizado teria que ser forçosamente outro, mais sussurrante, mais esfarripado e nunca aquela batida seca. Ainda não acreditas que o embate de dois corpos sólidos em colisão me marcou para sempre? A tua voz ainda ecoa na minha cabeça. Uma nano-versão do estampido de um carro, por exemplo, de encontro ao corpo de um peão. Eu era o peão. O arrependimento, ou algo parecido, foi concomitante. Não querias verdadeiramente – nisso queres muito acreditar – matar-me. Mas se não o tivesses mesmo querido, porque embandeiraste então e bramiste com tamanha pontaria, as tuas palavras soltas? Eu poderia ter escapado. 

Procuras à luz da tua consciência e procuras com um olho tão clínico quanto a tua miopia to permite, vestígios da minha morte. Nada descobres. Nada vês. Eu não te digo que morri. A tua consciência está incólume, lisa, limpa. Sentes um certo alívio. Olhas vaga e indeterminadamente em teu redor. A fauna do costume. Gatos que se esquivam por detrás dos muros tão pardos como a noite, alguns morcegos quase imperceptíveis, um último beijo de dois namorados e o brilho intermitente dos pirilampos. Lembras-te de como eu gostava dos pirilampos? Lembras-te das noites de verão, os santos populares, as alcachofras a gemer nas fogueiras? Os estalidos do fogo e as faúlhas a trepar o céu em direcção às estrelas? Eu nunca consegui fazer o jogo das varas até ao ponto em que elas rasam o chão. “ Tu, não prestas para nada”. Nem nunca aprendi a andar de bicicleta. “ Tu, não prestas para nada”. 
Cansado de manter as palavras presas ao céu-da-boca, não raro as colocavas na ponta da língua, encostava-las aos lábios e sibilavas entre dentes, qualquer coisa inaudível para os demais. Mas eu ouvia. Ainda ouço. Às vezes as palavras escapam-te pelos olhos. Eu aprendi a ler os teus olhos. “ Tu, não prestas para nada”. 
Matuto obsessivamente na minha morte. O presumível assassínio da aranha. No fim de contas, ela é uma inadvertida e abstracta companheira da minha solidão. O meu outro eu. O ponto escuro. Hoje é quase uma sombra que se arrasta atrás de mim. Fiel vizinha. Uma dor crónica que como qualquer outra dor, por razões distintas elegi para as minhas deambulações filosóficas. 

****5

O baque seco e inequívoco do meu decesso é afinal um som que estranhas e que eu entranho. Se tivesses esmurrado o ar, quase ao calhas, seria igualmente possível que os teus pés repetissem com rigores geométricos as minhas passadas? Imagina que percorro exactamente o mesmo caminho. Exactamente o mesmo caminho que fiz num qualquer dia da minha infância. Dou os mesmos passos. Faço o mesmo percurso. Venho da escola. O sol ainda vai alto e eu sei que a hora do jantar ainda tarda. Dá para um jogo do elástico. Talvez dois. Uma corrida pela praceta que entretanto se encheu de miúdos. Alguns dão pontapés numa bola. Outros atiram pedras aos ninhos das andorinhas. Paro por ali. As aves pequeninas, nuas e frágeis, ainda soltam pios mudos entre a porcelana fina dos ovos partidos. Coloco nas palmas das minhas mãos todas as que posso.
Já sei que morrerão em pouco tempo, tal como morreram outras que levei antes. Mesmo assim não desisto. Corro para casa, com os pássaros bebés enrolados nas mangas da camisola. 

Mal entro na cozinha pouso-as cuidadosamente sobre a mesa. Logo a seguir entras tu. Bêbado. Estavas quase sempre bêbado. Agarras nas aves minúsculas e atira-las violentamente contra a parede. “Tu, não prestas para nada”. O teu grito faz-me estremecer. Faço xixi. Pelas pernas abaixo. O medo impele-me para fugir mas impede-me de o fazer. Só queria salvá-las. Se ao menos uma vivesse… Seria matematicamente possível, ainda que pareça improvável, que voltasses a esmurrar os meus ouvidos com as mesmas palavras? Se ao menos uma vivesse… Dou-me agora conta do quanto procurei a tua aprovação. 

Eventualmente, eu poderei repisar algumas passadas. Mas tu não mudaste nada. Repetirias até à exaustão cada palavra que me adentrou como uma flecha em chamas. Deus ou o Diabo assim o determinaram, até por razões de tédio. Não há nada mais entediante que a constância. Tudo sempre tão igual. Talvez não valha a pena ocupar-me desperdiçando tempo num tão ridículo puzzle de passadas, mas sei agora quão maquiavélica é uma infância amarga. O que acontece na infância não fica na infância. Tu não sabes, mas foi na infância que desafiei os rigores matemáticos, geométricos e espaciais. Encontrei-me com Deus. Às escondidas. Quase tudo o que fiz na infância, fi-lo às escondidas. É por isso que ainda hoje não me conheces. Passados todos estes anos e não me conheces. Às vezes reclamo por que não me respeitas, mas vendo bem…como podes respeitar-me se não me conheces? O que sabes de mim? Vá, diz lá! Desafio-te a que me digas agora algo tão simples como…como o nome da minha cor favorita. Que música gostava eu de ouvir aos 15 anos? Quem eram os meus amigos aos 17? Não estranho o teu silêncio. Não sabes nada de mim. Na verdade, quase nada porque sabes afinal que eu não presto para nada.

****6

Li muito sem que tu soubesses. Escrevi muito sem que tu soubesses. Chorei muito e tu sabias. Tinha os meus anjos que me visitavam sempre que tu não estavas. Eles só entravam se tu não estavas. Esperavam ouvir o som rouco do motor do teu carro. O fumo que se evadia do escape subia até ao céu e indicava-lhes que tinhas arrancado. Podiam finalmente descer ao meu inferno. Suspeito que também eles tinham medo de ti. Nunca lhes perguntei. Nas tuas costas ensinavam-me a ver o brilho na escuridão. Pontos de luz na penumbra, formas no nevoeiro. Ensinavam-me a ver a alma das coisas. Das coisas que eu não podia tocar mas podia sentir e até das coisas que eu podia sentir mas não podia tocar. Ensinavam-me a ver a minha própria alma. Às vezes também a tua. E o ponto escuro. Aquele ponto escuro que flutuava no meio do negrume. Quando é que isso acontecia? Era à noite? Não. Não era. Uma vez eu estava no estendal da mãe a apanhar a roupa e vi o ponto escuro. Fechei os olhos e lá estava ele escondido atrás das minhas pálpebras. O ponto escuro. A aranha. A origem. O meu outro eu. Então era isso. Estava ali em busca da luz. Entretive-me sem pressas, a brincar com as rotinas. A luz havia de vir. Do meio das rotinas. Saías, trabalhavas, bebias, ralhavas, humilhavas, batias, comias, dormias, saías, trabalhavas, bebias, ralhavas, humilhavas, batias, comias, dormias, saías… Com quantas pessoas seria possível passar a papel químico uma rotina por mais repetitiva que fosse? És um homem previsível. “Tu, não prestas para nada”.

Hoje, coloco os meus pés em lugares que pisei noutras viagens. Se não tivesses esmurrado o ar com as palavras que acabaram por me matar eu teria descoberto outros lugares onde levar os meus pés. 
Tenho dias em que o aperto no peito é mais forte. Tenho dias em que sufoco num crescendo e logo que transponho a fronteira da minha infância, sinto algo que só uma aranha é capaz de sentir. Um atropelamento de todos os sentidos que acaba por ecoar-me na carne, nos ossos, nos tendões tensos, nas unhas que se cravam na minha pele, embrulhadas que estão nos meus punhos cerrados. Ouço os meus próprios dentes rangerem. Tudo em mim se retesa, numa espécie de ensaio geral de um sorriso para lá de forçado que tenho. Na verdade não tenho, não é um imperativo.
Olhar-te nos olhos e sorrir-te é a minha grande actuação. Finjo encantos que cá não estão. Balanço-me como quem dança, mas sem a graciosidade necessária ou antes, como se dançasse ao compasso de uma música diferente da que está a tocar na minha cabeça. O tema já não é o mesmo. Hoje tenho uma música diferente. 
Não sei se a ti te pesa a culpa. A culpa de sentir que começaste a desamar-me muito antes de que eu pudesse sentir o teu amor. Sinto que às vezes me olhas com princípios de ternura e pena. Nos teus olhos, o brilho que nunca rivalizou com o brilho do teu amor. 

****7

O mundo não é perfeito, mas tudo se tornou demasiado pesado nas relações humanas desde que o último concílio da humanidade decretou o amor como único garante da vida. Colocando-se no lugar dos deuses, os homens tentam, desta forma, equilibrar os excessos, nivelar as injustiças, ou apenas jogar uma última cartada na sobrevivência da espécie. Se apenas os não amados morressem, a dor seria, em teoria, suprimida e a selecção natural da espécie asseguraria, de uma só vez, a eliminação dos pouco empáticos, dos psicopatas, dos seres tóxicos e agressivos, dos malfeitores, dos mais velhos antes dos mais novos. Tanta ingenuidade! O que impede alguém de amar um crápula? Ou um idiota? Ou de desprezar o próprio filho?
Será um pai capaz de não amar uma filha que cometa o maior dos pecados? E de odiá-la mesmo que ela seja a mais amorosa das filhas? Serão todos os assassinos odiados por todos? Ninguém ama por decreto. E o sangue não é razão para amar. Alguns são capazes de simular sentimentos semelhantes ao amor e capazes de ludibriar o mais apurado dos sentidos. Outros amam com a desmesura dos mais sensíveis. Amam e pronto. Mas tu começaste a desamar-me muito antes de que eu pudesse sentir o teu amor. 

Ninguém está preparado para que a vida de outrem dependa da carga de afecto que nele se investe. Ninguém? Nem mesmo uma mãe, um pai? O que pode esperar a mulher que carrega uma vida durante nove meses? O que pode ela esperar quando abre as pernas para lhe mostrar a luz do dia? E um pai? O que pode esperar um pai a partir do preciso momento em que sabe que o mundo contará com uma extensão de si mesmo? Como manter um amor nivelado? Com a bolha sempre na horizontal. Estabilizada. O amor entre pais e filhos (desconfio) é em alguns casos, uma verdadeira profissão. É-o no nosso caso. Ninguém quer morrer. Ninguém quer matar. Claro que, no final de demasiados anos de vida, alguns desapontamentos e ainda as novas doenças para as quais não há cura, acabam aquilo que o desamor não consegue. Morre-se de qualquer maneira. Mas só o desamor é capaz de matar alguém antes que tenha vivido. 

As dúvidas não são muitas. Mas as perguntas, cresceram à medida que foram passando os dias sobre a minha morte. “ Tu não prestas para nada”. Deixas-me tirar isto a limpo? Porquê? Porquê eu? Porque é que eu não presto para nada? O que é para ti prestar para alguma coisa? Ter casado com um desses trolhas bêbados como tu, que se lançam ao balcão da taberna a pedir cervejas pela madrugada dentro? Ou ter uma carreira brilhante, um apartamento em Paris e um carro de alta cilindrada, habilmente conduzido por um choffer? Lamento desiludir-te, mas esta é a minha realidade e sim, podia ter sido diferente e não, não foi apenas por tua culpa que não foi diferente. Eu também tinha que ter sabido lidar com as lâminas que me apontaste ao pescoço. As lâminas que ainda na infância me começaram a cortar os sonhos. Transformei-me num naco de espaço desocupado. Vazio de afecto. E por isso, só descansaste quando me viste num féretro a caminho da morada final. 

****8

Se pudesses voltar atrás, àqueles instantes em que bradavas a minha inutilidade e insignificância, farias com que o tempo abrandasse no compasso inverso ao que o teu coração troteava? Não foi apenas uma vez que ouvi o teu coração e deixei de me iludir com estímulos que abafassem o som do teu desamor. Estavas preocupantemente a desamar-me, cada dia um pouco mais. Àquela velocidade, nos meus tenros 7 anos, eu teria a mais, quando muito, uns seis meses de vida. Mas não sei porquê, apesar da minha morte, o meu corpo prevaleceu. Resistiu. Cresceu e arranjou forma de continuar a mover-se sobre a terra. 
Se ao menos a aranha ainda estivesse viva… Como é que o simples e pouco sólido corpo de uma aranha podia ter originado um estampido tão audível? Um eco que se ouve desta margem da vida onde estou agora? Por certo, as palavras que me berravas insistentemente ficaram de alguma maneira, suspensas na teia. E quando lhe dá o vento, elas vibram como as cordas de uma guitarra. 
Envelhecemos. Já reparaste como envelhecemos? Os rios que sulcam a pele do meu rosto começaram antes a sulcar a pele do teu rosto. Já não és o belo homem que posa sorridente para a fotografia com o cigarro entre dedos e eu já não sou a rapariguinha que faz xixi pelas pernas abaixo mal entras em casa. Hoje, tu és o moribundo que esconde um corpo decrépito por baixo dos lençóis de linho, imaculados. E eu sou a tua única companhia. Limpo-te a baba e dou-te água a beber por palhinhas que cabem no único espaço que consegues dispor entre os teus lábios. Ouço-te grunhir, um som rouco e distorcido que te foge da garganta. Não sei garantir se manifestas a tua dor ou a tua decepção. Serão ainda as mesmas palavras? “Tu não prestas para nada.” 

****9

Sorrio. Mesmo que te vire as costas logo que posso, para não tornar mais penoso e ridículo o meu sorriso plástico. O mais barato que encontro. Um sorriso barato para uma emoção cara. Mas ouço a tua voz. Cerro os olhos para não me irritar com a tua voz. Pergunto-te o que disseste. Tornas a repetir:
“-Está por aqui um bicharoco. Parece uma aranha.”

Num ápice, atiras com a palma da mão sobre a nuca calva. Ouve-se o baque da estalada. “ Tu, não prestas para nada.”
Matas a aranha. Na tua mão há agora o resto de uma vida. Um corpo estardalhado é tudo o que sobra de uma vida expedita. Uma vida que sabia fazer teias. Tu não sabes fazer teias. Antes soubesses, mas és apenas um homem. Um pequeno homem. Os pequenos homens não são capazes de grandes coisas. Não são capazes de fazer teias, porque não há teia que não seja feita com amor e os pequenos homens não são capazes de amar. 
Sou afinal órfã. Sou filha de um desamor crónico. Aos 4, 5, 7 ou 8 anos, eu apenas dependia do teu amor e esse esgotou-se. O teu amor era só areia numa ampulheta. Não tive irmãos. Não tive um seguro de vida com o qual pudesse contar. A necessidade de encontrar o amor para lá do berço, a redoma familiar, resultou depois em consequências funestas. “ Tu não prestas para nada”. Acho que me habituei ao desinvestimento nas relações colaterais, secundárias, amigáveis. O mundo continuou imperfeito. Aprendi a gostar de ser um caso solitário. 

****10

Peço-te que não vás ainda. Espera pelo menos até amanhã. Amanhã é o dia dos meus anos e eu quero ver se te lembras do dia em que eu nasci. Era Dezembro. 
O céu desabava sobre as nossas cabeças e os sinos da igreja repicavam para o funeral da Fernanda. Lembras-te? A barriga dela, enorme, haveria de esvaziar-se da vida que trazia dentro, dali por dias. Apenas mais uns dias e o choro de outra criança haveria de fazer coro com o meu choro e juntas haveríamos de encher a aldeia com a nossa voz. Era também uma menina. O corpo dela que nunca se separou do corpo da sua mãe foi entregue aos bichos naquele dia de chuva. Chovia torrencialmente. Não havia anjo no céu que não chorasse a morte daquela menina. Nasci no preciso momento em que o cortejo fúnebre passou, e mal dei por ele, chorei também. Calei-me quando senti o suave embalo dos teus braços. E foi nessa altura, nesse preciso instante, escutando os passos de quem seguia na rua atrás do caixão que eu compreendi que morrer é a única consequência de se estar vivo. Percebi, logo ali, tão poucos minutos depois de me ter sentido viva, que aquela criança no ventre da Fernanda era eu também. Uma outra versão do meu corpo pequenino e frágil. Uma versão morta do meu corpo pequenino e frágil. A Fernanda, essa voltaria a ser novamente eu, quando o tempo me deixasse correr o suficiente pela vida. A versão morta do meu corpo adulto. 

Não vás ainda. Espera por amanhã. Sei que não me reconheces e há muito que não dizes sequer o meu nome. Tirarei a camisa branca que te ofereci num dos nossos natais passados e farei por encontrar o teu melhor fato. A tua melhor gravata. Já se passaram muitos anos desde que me deixaste à minha sorte, tecendo sozinha a minha teia. Mas ainda sei onde guardas as tuas roupas de domingo. Ficarei ao teu lado até amanhã. Preciso do brilho febril que baila nos teus olhos para garantir forças que não sinto. De outra maneira jamais seria capaz de te dizer tudo o que pretendo.
Amanhã já terás esquecido tudo. Não te preocupes. Desta vez não te culpo porque sei que não é descaso. A verdade é que quiseste tanto e por tanto tempo esquecer-te de mim que Deus te fez a vontade e te tolheu o acesso à memória. É alzheimer, Dizem. Deve ser. Deve ser isso que faz com que me olhes todos os dias como se fosse sempre a primeira vez. Digo-te quem sou e tu olhas para mim com os olhos envidraçados de espanto.
Não te lembras, pois não? Não te lembras de nada. Podes até sentir-te aterrorizado com a facilidade com que as palavras, mais do que isso, as palavras certas, encontram o caminho e sentes-te ainda mais esmagado com a clarividência e limpidez do meu discurso. 
Claro que sabes que tenho razão. Sabes perfeitamente porque é que a cada dia que te odiei mais um bocadinho me odiava mais um bocadinho.

****11

A partir de certa altura parei de te odiar. Não o fiz por ti, claro, mas eu precisava de sobreviver, precisava de reconstruir a minha teia com o meu próprio aço, porque para além de ti, e depois de ti, muitos outros predadores vieram no meu encalço. Precisava de começar a amar-me. De aprender a amar-me. Ao contrário de ti, eu nunca descartei a hipótese de viver. E tu nunca descartaste a hipótese de que, apesar de tudo, eu vivesse. Contra todas as probabilidades. Foi uma aposta ganha. Se eu resistisse, provarias a ti próprio que a vida não se extingue quando em condições inóspitas. Talvez tivesses na experiência um aprendizado único e precioso. Se eu vivesse, tu poderias também viver. Vali enfim de alguma coisa. Fui a tua egoística salvação pessoal. 
Já te disse que o que acontece na infância nunca fica na infância? Claro que disse. Tu é que já te esqueceste. A maldita doença que te nega o acesso à memória impede-te de lembrar daqui a um minuto o que estou a dizer-te agora. Aposto em como olhas para mim tão silenciosamente porque já nem sabes como libertar o som das tuas cordas vocais. Será que pensas? Em que pensarás tu? Talvez te perguntes que raio estou para aqui a dizer. Talvez te perguntes quem sou eu. Quem sou eu? Sabes quem eu sou?
Sou a aranha. Sou a aranha, lembras-te? Sou aquela aranha que mataste com as palavras. “Tu não prestas para nada”. Não sei porque usaste o cinto das tuas calças. Nunca precisaste dele para nada. Bastaram as palavras. Não olhes agora para mim como se matutasses obsessivamente na minha morte. Tu não és o presumível assassino da aranha. Tu és o assassino da aranha. Desculpa, dizer-te isto assim, mas sinceramente não vejo grande problema. Daqui a nada já não te lembras do que te estou a dizer agora. 

Tens alguma aranha sobre a tua cabeça? Na tua cabeça? No fim de contas, ela é a outra versão de mim. Uma inadvertida e abstracta companheira da tua solidão. O meu outro eu. Vim para ficar contigo para sempre. Para ser o teu ponto escuro. Depois de teres sido a sombra que se arrastou atrás de mim, sou hoje a sombra que se ergue sobre ti. Fiel vizinha. A dor crónica que como qualquer outra dor, por razões distintas elegi para as minhas deambulações filosóficas, é agora também a tua dor crónica. A tua culpa.

****12
As últimas semanas serviram para nos unir num frenesim de memórias. Não dizes nada, mas sei que te lembras. O teu silêncio é o teu consentimento. Não foi sempre o silêncio de alguém, uma forma de consentir? Jogámos e dissimulámos. Tu com os teus olhos e eu com as minhas palavras. 
Tenho quase tudo dito. Mas ainda falta um bocadinho para amanhã. Fica só mais um pouco. Fica só mais este pedaço de tempo que nos resta até que a luz volte a nascer sobre o meu dia de aniversário. É Dezembro outra vez. Hoje não chove a potes nem passam marchas fúnebres sob o parapeito da janela. Está tudo calmo. Não se ouve o choro de uma criança acabada de nascer. Faltam poucos minutos. Dá-me os parabéns uma última vez e depois podes ir.

É uma pena que tenhamos deixado tantas coisas por fazer. Nunca brincámos juntos. Nunca jogámos juntos. Tive uma amiga de escola que jogava muitas vezes à cabra cega com o pai. E ao ringue, quando o sol se curvava sobre o mar. Às vezes, de manhãzinha cedo, corriam às voltas na praça, ou andavam de bicicleta. Juntos. Já me esquecia. Eu nunca aprendi a andar de bicicleta. “Tu, não prestas para nada”. Mas aprendi a jogar, apesar de nunca termos jogado a coisa nenhuma a não ser talvez ao jogo do amor e do desamor. Um amava e o outro desamava, até que desamámos os dois. O jogo do amor é o jogo da vida, e o jogo da vida é o jogo da morte.
Agora que as cores baças da tua íris ganham tonalidades desconhecidas, pergunto-me se alguma vez te deste conta de que até a morte tem brilho. Claro que tem. Se a morte não brilhasse não seria possível aos vivos encontrá-la no meio do escuro. Já está escuro. E a morte está aí. Ela brilha para que tu a encontres. Ela deve saber da doença que te impede de aceder à memória porque não está à espera que te lembres da Fernanda deitada naquele caixão no dia em que eu nasci. Para que a reconheças ela ganhou traços distintos, bem diferentes daqueles que a febre te impõe. 
Agora podes ir. Não te preocupes comigo. Estou salva. Um dia, ainda nos vamos rir disto tudo desenfreadamente. E então, também tu ficarás salvo. Livre do peso da culpa. Livre do peso das palavras. “Tu, não prestas para nada”. Será anedótico. Absolvo-te do assassínio do meu outro eu. A parte de mim que resistiu e sobreviveu transformou-se numa aranha diferente. Numa lutadora nata. 

Não precisas de verter lágrimas. Pára com isso. Daqui a pouco já não vais lembrar-te de nada. Podes ir. Encontraste o brilho da tua morte e ela não espera. Vai. Talvez a memória tenha uma ponte para o escuro. Para esse lado da vida que te aguarda. Talvez aí a doença não te vede o acesso ao arquivo das vidas que vivemos juntos. Se assim for, hás-de lembrar-te que te perdoo.
“-Parabéns.”
“-Obrigada, pai.”

(Ana Kandsmar)


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