Cidália ou Cidalina?



Não me recordo do nome.

Era lourinha, magricela e adorava saltar à corda e ao elástico. Lembro-me de que usava óculos. E tranças no cabelo, que prendia com fitinhas coloridas. O autocarro da escola dava a volta ao norte do concelho e ela era a penúltima (a última era eu) a sair numa aldeia pequenina, na verdade, não mais que um lugarejo com duas ou três casas e muitos campos de cultivo pelo meio.

Era então a minha melhor amiga. Abraçámo-nos no último dia de escola, antes das férias grandes. Eu tinha transitado para o 3º ciclo, ela não. Ficara retida com negativas que a acompanhavam desde o primeiro período e das quais não conseguira recuperar. Chorámos agarradas uma à outra, cientes de que a separação definitiva nos esperava. Ela não continuaria os estudos. Os pais, a quem a pobreza assistia fielmente desde o princípio da vida, ditaram que não havia lugar a segundas oportunidades. Era pois o trabalho que a esperava. 
Aquele abraço, o último que demos, eternizou os nossos muitos momentos juntas. Éramos participantes activas num grupo de fãs dos Duran Duran, e eu criara um grupo de teatro no qual me recusava a representar, mas escrevia os guiões e ela ficava sempre com o papel principal num grupo que não tinha mais que meia dúzia de miúdos. A figura da Cidália (ou Cidalina) abandonou-me por completo até hoje. Nunca mais nos vimos. Nada sabemos uma da outra e a vida e os seus múltiplos acontecimentos foi, entretanto, apagando o rosto dela na minha memória, talvez também o meu rosto na memória dela. Esta noite voltou-me às lembranças. Num sonho. Num sonho em que havia um mostrador de um relógio a piscar insistente nas 4 e 28 da manhã e o rosto da Cidália, (ou Cidalina) a sorrir-me, como antes. Tinha ainda os óculos, as tranças e as fitas, e o riso pareceu-me estranhamente igual. Desapareceu quando eu ia dizer qualquer coisa e acordei a pensar nela. No que será feito dela. Terá casado? Terá filhos? Terá depois convencido os pais e voltado a estudar? Terá emigrado? Terá morrido?
A última vez que sonhei com um rosto conhecido e perdido no tempo foi assim, de igual estranheza. Durante o sono, aparece-me a figura de uma rapariga que conheci no meu curso de jornalismo, no Cenjor. Inocentemente, perguntei-lhe o que fazia ela ali, no meio do nada…curioso eu sonhar que estava no meio do nada e que encontro alguém no meio do nada, como eu. “Eu ando a passear” disse. “E tu? O que fazes aqui?” “ Eu? Eu morri”…“ Ah, boa! Fixe!” acho que lhe disse isto com total descaso e devo ter continuado o meu passeio sem lhe dar grande importância. Certo é que, passados alguns dias, vim a saber que a Sandra morrera na noite em que sonhei com ela, num acidente de viação.
Pergunto-me o que é feito da Cidália ( ou Cidalina) e o que raio poderá significar aquele relógio a piscar nas 4 e 28. 
Cidália…Cidalina…4 e 28. A mim, acontecem destas coisas tão estranhas…


Ana Kandsmar




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