O Fantasma de um Natal Futuro (Conto)


Já não nos vemos há séculos. Eu e tu, em dias de aniversários que quase se tocam, lembramos, tenho a certeza, do tempo em que nos festejávamos juntos, intervalando apenas por 24 horas de consciência natalícia, que afinal a época é de outros festejos e bem mais importantes que os nossos parabéns ofuscados pela estrela de Belém. 


Imagino-nos daqui a uns anos, poucos que não nos queremos velhos, apenas o suficiente para se somarem às rugas da nossa pele mais umas quantas rugas, e aos nossos cabelos brancos mais uns quantos cabelos brancos, rendidos ao cansaço e frenesim da quadra, encostados ao balcão de uma livraria. Eu a balançar um papel nas mãos, santo e senha para mais meia dúzia de compras, um livro, um perfume, uma gravata, talvez uma caixa de chocolates, filha és e mãe serás. Tu na fila, em modo de espera impaciente pelo último furor da literatura, que entretanto alguém embrulha atrás do balcão numa folha ocre de papel pardo. No abandono resignado do encosto, sentiremos então que somos tocados, eu por ti e tu por mim, sem que antes nos tivéssemos visto, distraídos pela fadiga de mais uma sessão de compras em que já só temos vontade de tombar os corpos para o mesmo lado.
Despertando do marasmo meio dorido a que nos abandonaremos por segundos, haveremos de nos endireitar de um pulo e cozinharemos as desculpas da praxe, olhando-nos, embasbacados, incrédulos.

Saberemos que somos nós, mas não imediatamente: no primeiro milésimo de segundo nem nos veremos até porque nenhum estará na verdade ali, na manhã de uma véspera de Natal, cercados pela fúria consumista de uma turba sem sonhos, de mão no ar e à espera da misericórdia de um empregado que nos trará embalada a alegria em diferido dos rebentos já crescidos, filhos de outros amores. Aquele encontro estará, portanto, predestinado a ser pouco mais do que um anacronismo, um parágrafo que o autor da história se deve apressar a apagar. Mas não apaga e nós ali estaremos, com o pânico por momentos pespegado nos olhos do outro, na boca do outro, nas rugas sobrevindas do outro.

Haverá então de se instalar a dúvida mútua, como haveremos de nos tratar? Talvez com uma raiva polida que, de qualquer modo, será sempre fingida. A despedida, anos antes, não foi das mais cordatas mas na bruma dos tempos que se seguiram, tanto se arrojou mutuamente, arrancando cabelos e engolindo sapos, agoniados com o novo silêncio e a nova vida do outro, que nos restará daqui a poucos anos, pouco mais do que farrapos (embora fundos e incrustados) de memórias. A passagem balsâmica do tempo acabará por diluir-nos o ódio e as suas cores que já foram berrantes, mas que tem vindo a esmaecer como as de um fresco antigo por restaurar. De algum modo, andamos há anos a enxertar este amor, distante e à distância, nos outros que entretanto a vida foi trazendo, deixando-nos a sós para revivê-lo quando um rosto parecido se assoma no meio da multidão, entre um passeio aos lugares que já visitamos juntos, e o percurso para o trabalho, numa espécie de masturbação solitária e quase feliz, como quem se vem com os cinco sentidos presos ao holograma de um rosto antigo: “deixa-me fechar os olhos e fingir que te tenho aqui.”

E assim, mortos e enterrados os relambórios finais deste amor partido em cacos e despejado no lixo a pazadas rápidas, haveremos de nos permitir um sorriso. Sincero e sentido, porque nos tocaremos e misturaremos calores e odores (pronto, já cá tenho o teu cheiro outra vez) ao som de um gingle bell interminável que nos cantará a alegria dos natais de outros tempos, natais passados à lareira a ver filmes para maiores de 18, depois dos miúdos adormecerem exaustos e felizes porque andaram de trenó na Vila Natal. 
Haveremos então de, por minutos que serão rápidos demais, mas que nos parecerão horas intermináveis, alhear do ramerame dos casalinhos de fim-de-semana (muitos, seguramente, tocando-se na cama com intensidade inferior ao nosso encosto de ombros e bebedeira de hálitos, ali ao balcão de uma livraria, ocupados a relembrar as dívidas e rancores das décadas anteriores).

Depois da exultação inicial, no entanto, haverá de se instalar a conversa banal: 
“Então, estás boa? Nas compras?”, “Sim, para os miúdos, e tu? Tens filhos?”, “Não. Nunca calhou. E os teus como estão, bons? Que idades já têm?”, “Sim, estão bons. Um saiu e outro ainda está na faculdade, uma trabalheira, ele tem 24 e ela 20. Já são crescidos.”,“Pois é, mas vale a pena”, “Sim, é muito bom.”, “Casada? Separada?”, “E tu?”, “Onde moras? No mesmo sítio?”, “Não. Mudei.”, “Queres tomar um café?”, “Não posso, tenho a família toda para jantar lá em casa…”, “Ah, sim… Bom, também tenho que ir. Olha, se quiseres, um dia destes...Gostei de te ver”, “Combinado…Também eu gostei de te ver”. 

E lá iremos, voltando de novo as costas um para o outro, ficaremos suspensos na irrelevância das palavras, dois amantes pistoleiros numa vilória poeirenta do faroeste suburbano, num frente a frente de tudo ou nada, que se amarão sempre, por muito que amem outros, por mais tempo e ainda mais do que um ao outro. Naquele dia, por um acaso da sorte ou do azar, haveremos de nos exalar de novo, desprovidos de outra emoção que não a do prazer do reencontro. 

Quando o empregado finalmente chegar com os respetivos embrulhos, haveremos de nos despedir com dois beijos na cara, e prolongaremos o toque das nossas peles até ao limite do socialmente correto até estremecermos, como um sinal de alerta de que é chegado o momento de nos separarmos, cada um para seu lado, pois teremos os carros à nossa espera em lados opostos do estacionamento. 
Atiraremos os embrulhos com desnecessário descuido para o fundo da bagageira perguntando-nos incessantemente se o que cada um fez do seu Natal era o suposto, aquilo que nos estava destinado a fazer. 
Então, eu pensarei nos miúdos e em todas as minhas lutas, relembrarei os árduos caminhos que percorri sem ti, os desertos inóspitos que atravessei sozinha, e revisitarei todas as noites de abandono em que o teu corpo me fez falta. 
Agarrar-me-ei aos velhos rancores e murmurarei pela milionésima vez que quem não esteve ao meu lado nas minhas derrotas não estará nas minhas vitórias, e far-me-ei à estrada atravessando a cidade muito menos iluminada que toda eu por dentro. 
Uma fiada inteira de luzes, daquelas com trezentas lâmpadas, mil watts, várias cores em múltiplas combinações e oito melodias, correr-me-á nas veias até me assomar a pele a arder em curto-circuito… Raispartam os meus olhos marejados.


Fim

Ana Kandsmar

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