Kilimanjaro (Conto)



Naquela tarde, naquele fim de tarde, Joana correu uma vez mais pelo relvado do parque, subiu a estrada atravessando o bairro residencial, passou em frente da escola, onde, uma fila de carros parados aguardava a campainha que assinalava o fim de mais um dia de aulas. Tão mais fácil aquela leveza com que as crianças encaravam a vida. Era o início de Verão de um ano qualquer. Dali a poucos dias elas, as criancinhas, estariam de férias, votadas às brincadeiras e ao tempo que não se esgotava nem se compartilhava em horas para deveres, para isto e aquilo. Que saudades de ser criança. Parou de as olhar, quando o telemóvel lhe vibrou no bolso. O Luís. “Estou online”.


Acelerou a corrida, desejando com um passe de mágica atravessar o portão que a separava de casa. A pressa, a correria que lhe invadiu as veias, impeliu-lhe o coração a bater mais depressa. Desordenadamente. Um fulgor que aumentava dentro dela e lhe fazia formigar o corpo. Sabia que aquela era a hora em que o encontraria do outro lado do ecrã, mas naquele dia, havia-se atrasado. Recriminava-se por isso. Felizmente um vislumbre da casa ao fim da rua assomou-lhe os olhos, e em menos de nada, ali estava ela a atravessar o portão. Não mudou de roupa sequer. Não havia tempo para isso. O banho habitual após a corrida dos fins de tarde teria que esperar. O Luís é que não. O Luís não podia esperar. Nem ela. 
Roeu as pontas das unhas da mão esquerda, com o nervosismo que aumentava a cada segundo que o computador demorava a ligar, enquanto, com a direita deslizava os dedos sobre o teclado do telemóvel para avisar: “ Vou entrar agora.” Enviado. 

-Olá. 

-Até que enfim chegaste. 

A frase de alívio dele saltou-lhe defronte dos olhos naquela janela de chat e fez-se acompanhar por um bonequinho cujo coração lhe saltava do peito. 

-Tinha saudades tuas- Acrescentou ele. 

Joana voltou a roer as unhas, hesitando na resposta. Queria dizer-lhe que também sentia saudades dele, saudades de um rosto que não conhecia, de um corpo que nunca havia tocado antes, de uma voz que imaginava ser quente e doce quando sussurrada ao ouvido de permeio com um hálito morno, próximo da sua pele, da sua boca. Mas a recordação de Pedro, assaltou-lhe os pensamentos. Era errado. Era? Ou melhor…seria? Seria errado assumir que a cada dia que passava, desejava mais outro homem que não o marido e mais vontade tinha de o conhecer? 

-Eu também.- Acabou por admitir.- Demorei mais um bocadinho hoje. Desculpa. 

-Estás desculpada. Que fizeste? 

-Hoje? O costume. Nada de especial. 

-Não é isso. Foste ao advogado? 

-Ainda não.- Respondeu recriminando-se secretamente por não ter dado ainda o passo que faltava para a liberdade. 

-Porque esperas? Ele bateu-te, certo? Se te bateu tens a lei do teu lado. Ele não tem como recusar. 

Sim. O Pedro tinha-lhe batido. 

“-Puta.”- Gritara-lhe ele. “-Minha grande puta! Andas cheia de outro qualquer e por isso não queres nada comigo! Quem é o chulo que te anda a comer? Diz-me!” 

E mandara-lhe um estalo. E depois outro. Ela não tentara defender-se. Ainda lhe doía a cabeça no sítio onde ele lhe tinha agarrado os cabelos para a empurrar contra a parede. O lábio superior tinha rebentado e uma bola de sangue já seco salientava-se, exibindo para todos as marcas da violência de Pedro. Mas era a tristeza no olhar dela que o denunciava. 

-Disseste-me que és casado.- Perguntou ela. - Nunca bateste na tua mulher? 

Ele esperou algum tempo antes de responder. Por fim a janela do chat voltou a encher-se de palavras. 

-Sim. Já. Mas o caso é diferente. Ela tem um amante e foi…, foi apenas uma vez. Perdi a cabeça. 

-Tem um amante? Tens a certeza? 

-Sim. Tenho. Ao contrário do teu marido que apenas tem suspeitas e com base nelas te agride, o sacana! Como é que permites isso? 

-Ele também só me bateu uma vez. 

As letras que lhe saltaram no ecrã eram maiúsculas e com vários pontos de interrogação. 

-ESTÁS A DESCULPÁ-LO????????? 

-Não. Mas não me pressiones. Quero pensar muito bem no que vou fazer. 

-Se tu quiseres…eu posso ajudar-te. 

- Ajudar-me? Como? 

-Conheço um advogado…é meu amigo. Ele faz-te um bom preço. Gastas 400 euros e ficas com o divórcio. E se quiseres, eu mesmo lhe pago. Sei que não estás confortável economicamente. 

-Eu…gosto de saber que posso contar contigo, mas não precisas de fazer isso, Luís. Prefiro ser eu a resolver os meus problemas. 

-Não sejas orgulhosa, Joana. A vida não está fácil para ti, mas a mim não me custa nada ajudar-te. 

A vida não estava fácil para ela. Era um facto. Já estava desempregada há algum tempo e se lá em casa as contas continuavam a ser pagas e não lhe faltava nada, podia agradecer ao Pedro que encontrara na medicina uma actividade rentável. Actividade que, curiosamente, era partilhada com o Luís. Eram ambos médicos, ambos especialistas em cardiologia, ambos trabalhavam em hospitais e tinham à parte disso os seus próprios consultórios. Na mesma cidade! Várias vezes se havia questionado sobre se, por ironia do destino eles seriam colegas, mas Joana nunca lhe confidenciara pormenores sobre a vida profissional do marido, nem perguntara a Luís nada mais além do nome, idade, onde morava, se era casado, se tinha filhos... Tudo o que sabia surgira em conversa, sem que para isso ela tivesse feito interrogatórios. Sendo assim, os dois poderiam perfeitamente partilhar o mesmo local de trabalho. E se…e se fossem amigos? Não. Isso já seriam demasiadas coincidências. 

-Não se trata de orgulho. – Justificou. – É apenas uma questão de princípios. Estou habituada a resolver os meus problemas sozinha. 

-Então não se trata de princípios mas sim de hábitos. Devias habituar-te também a receber ajuda dos outros quando encontras quem esteja disposto a dar-ta. 

Joana desejou mudar de assunto. Assaltou-lhe de novo o espírito um desejo incontrolável de o conhecer. Como seria ele? Falavam há cerca de dois meses, sempre a horas certas. Horas em que sabia que Pedro estaria a trabalhar, alheio aos dedos que agora deslizavam sobre o teclado. Alheio às frases que se iam sobrepondo no ecrã, aos desejos que se iam mesclando com os medos, os suores que lhe humedeciam a pele atirados para fora das camadas subcutâneas por uma adrenalina sorrateira, sigilosa. Joana e Luís nunca haviam dado o passo seguinte. O do encontro. Não haviam sequer trocado fotografias. Um idealizava como seria o outro, faziam construções, colocavam hipóteses. E por entre as breves descrições tentavam adivinhar como seriam os seus rostos. 

- Não imagino o que sou para ti, Luís. Mas quero ser-te mais que palavras. Mais que uma imagem parada, encolhida na tua retina, quero ser-te gente, carne e osso a encontrar-te a meio de uma ponte curvilínea, sólida, como aquelas que os romanos construíram para ligar terras distantes. Terras que de outro modo não se saberiam próximas. 

- E eu… Eu quero-te mais do que as palavras que pressinto como enchentes a galgar, a alagar as minhas margens. Também não te quero só esta escrita. 

Ambos fartos dos corredores de frases que criavam breves calores, mas que lhes gelavam o sangue quando lhes acrescentavam um ponto final. Eram agora um para o outro distracções, sopros de fé, um breve fogo que os tomava quando o indizível se intuía mas ficava por escrever. 
- Não imagino o que sou para ti. – Voltou ela a escrever. 

Era um facto. Não imaginava. Sabia apenas que ele lhe desconhecia a bagagem pesada, as toneladas de vida que carregava como uma escrava, África acima. Ela tinha dias em que soçobrava logo ali, no sopé de um kilimanjaro qualquer. Mas tinha também outros em que atravessava savanas, areias molestas e escaldantes. Caminhava brava e estoicamente até à sombra das árvores que germinavam dos raros oásis. 
Mas afinal o que sabia ele dela? Nada. Sabia apenas que a queria. Que queria um amor fresco. 
Mesmo que o adivinhasse um salto no escuro, um nada do qual haveria de se fazer luz, uma onda abrupta que haveria de irromper onde ainda agora o mar se ondulava em paz e serenidade. Afinal, o amor era renascimento. Ou não era? O amor, a renascença, a alegoria primaveril de Boticelli, as suaves brisas ao vivo, o reverso da teoria. Haveria de ser dele o amor dela. E para isso, teria que acontecer o encontro. O tão desejado encontro. Porque mais do que palavras e imagens, o amor tinha que ser encontro. E não podia haver encontro antes das borboletas a esvoaçar dentro do estômago, antes das arritmias no coração, da timidez a despontar na curvatura dos lábios quando eles sorriem. 

O amor nunca vem sozinho. O amor vem sempre acompanhado de mistérios, mapas de tesouros em terrenos acidentados, difíceis de desbravar. 
Seria um risco partir para o encontro. Saírem dali, saírem do conforto do teclado, exporem-se para fora da protecção do ecrã seria um risco. Mas também não era menos verdade que a vida para além do que escreviam era uma questão de alento, de surpresa, admiração, amor à primeira, à segunda vista ou nenhuma delas. Havia sempre que contar com o desapontamento, a constatação dos factos. E se nenhum dos dois fosse nada do que esperavam um do outro? E se…? E se…? Mas enquanto o amor não se tornava encontro não poderia ser amor. Do outro lado do ecrã as palavras não os transportavam para as pontas dos dedos. Para perto um do outro. Tão perto, que e as suas mãos se enlaçariam, os seus corpos se encostariam e fundiriam um no outro. 

-Amanhã?- indagou ele esperançoso que finalmente ela perdesse o medo e o “sim”, o tão esperado “sim” lhe saltasse naquela janela de chat. 

-Sim. Amanhã. 

Até que o amanhã era hoje. E o hoje, o princípio de uma nova vida. O hoje era um fim e um recomeço. O hoje era um ponto final. Um capítulo que chegava ao fim e outro que se iniciava. Melhor ainda, uma nova história. Ficava para trás um Pedro, um namoro de vários anos, um casamento de mais uns quantos. Ficava para trás um médico e as suas ausências por motivos profissionais, os jantares a que haviam faltado, os aniversários que não haviam celebrado, as viagens que não haviam feito. Ficavam para trás as noites em que não dormira por sentir-se só, os dias em que a tristeza lhe roubara o sorriso, o prazer de entrar em casa, de dividir um sofá, uma cama, um orgasmo. Ficava para trás o sonho de perpetuar pela vida fora um amor que se haveria de multiplicar. Que ela desejara multiplicar. Multiplicar por mais sonhos e uma ou duas réplicas de si mesmos, para sonharem ainda mais. Multiplicar por mais amor que haveriam de sentir por uma ou duas réplicas de si mesmos para amarem ainda mais. Mas o sonho morrera. O amor morrera. Amanhã já era hoje e ficava para trás o amor que morrera. 

Amanhã já era hoje e finalmente Joana esperava Luís. Esperava-o naquela esplanada com vista para as ondas revoltas do Cabo Carvoeiro, que à bruta se despedaçavam nos rochedos. Esperava-o aflita, o corpo em ânsias, o coração em chamas, a cabeça um turbilhão de certezas e mil turbilhões de dúvidas. Toda ela uma onda que se debatia contra o rochedo da vida, a dureza das circunstâncias que a haviam empurrado até ali, a fé que deixara cair no asfalto ao longo dos quilómetros que percorrera para ali chegar. A fé no Pedro. A fé no juramento que ela própria havia feito há vários anos atrás. 

Olhou o telemóvel, depois de rodar a cabeça em todas as direcções, perscrutando o local, tentando adivinhar a presença do homem que ainda não conhecia mas que a arrebatara, lhe ganhara o coração, resgatara para a nova vida que despontava ali. Naquele local. Naquele momento. Não avistava ainda nenhum homem sozinho. Ou pelo menos nenhum homem sozinho com as características que Luís afirmara possuir. 

«Sou alto, 1,85. Moreno, olhos azuis e cabelo castanho liso. Irei de Jeans e uma camisa branca.» Ele não estava. Não estava ali, nem no seu telemóvel. Não estava. Ela incidiu de novo o olhar sobre a caixa de mensagens, mal um toque a roubou aos pensamentos. 

- Estou a chegar. 

Joana sorriu. O coração de Joana sorriu. 

-Não me quero em ti condensada no degelo da palavra escrita, no silêncio que tudo diz: o que se ganha e o que se perde, ali na hora. Não te quero em mim, apenas um olá pela manhã ou um adeus pela noite. Quero-te antes em tudo o que existe de permeio. Entendes o que quero? 

Enviou a mensagem e a resposta rápida acertou-a de novo, bem no centro do cubículo cardíaco. 

-Entendo. 

Joana olhava para a porta, atenta a quem chegava e tomava o seu lugar na esplanada. Atenta a qualquer figura masculina que se assemelhasse ao homem alto de 1, 85m. Atenta a qualquer par de olhos azuis que revirasse o lugar também em busca de alguém. 

O gelo que se afundava no copo de gin, antes a refrescar-lhe as mãos, transferiu-se para o sangue que lhe corria nas veias. O homem alto, moreno, de olhos azuis, jeans e camisa branca estava ali. Olhara primeiro em redor, para descobri-la no meio das outras mulheres que contemplavam as ondas do mar bravio, ondas loucas por se despedaçarem nos penhascos, e depois de a ver…o olhar tornara-se grave e o sorriso antes amigável, curvava-se numa clara intenção de morte. Morria o sorriso nos lábios de Luís…morria o sorriso nos lábios de Joana. Morria o sorriso nos lábios de Pedro. Pedro. Aquele homem era Pedro. 

Amanhã já era hoje e finalmente Joana encontrara o Luís. Esperara-o naquela esplanada com vista para as ondas revoltas do Cabo Carvoeiro, ondas que à bruta se despedaçavam nos rochedos. Esperara-o aflita, o corpo em ânsias, o coração em chamas, a cabeça um turbilhão de certezas e mil turbilhões de dúvidas. Toda ela, uma onda que se debatia contra o rochedo da vida, a dureza das circunstâncias que a haviam empurrado até ali, a fé que deixara cair no asfalto ao longo dos quilómetros que percorrera para ali chegar. A fé no Pedro. A fé no juramento que ela própria havia feito há vários anos atrás. Mas aquele homem era o Pedro. O homem que a despertara de novo para a vida era o mesmo que a tinha conduzido à falta dela. Ao torpor. Ao adormecer do ânimo que antes a inundara. O ânimo que ele próprio lhe trouxera quando Joana o conhecera. 


Ainda ele caminhava na direcção dela, ainda duas mesas e respectivos ocupantes se interpunham entre eles, ainda um empregado de mesa passava no meio dos dois, e já os olhos dela vazavam, os olhos, loucos para libertar água como ondas bravias, ondas que se desfaziam no rosto e formavam trilhos, ribeiros afinal mansos, afinal conformados com a descoberta. 
Ainda ele tinha mais um passo para dar e já as mãos lhe tocavam, as mãos que antes a tinham abandonado, as mãos que antes a tinham agredido, magoado, ali estavam aquelas mãos a deslizar sobre o seu ribeiro manso, o ribeiro que lhe galgava a face e desaparecia sob as finas linhas do rosto. Ali estavam aquelas mãos determinadas a pacificar-lhe as emoções, a mostrar-lhe que afinal ela não era quem ele pensara, mas que importava isso agora? Que importava, se ela era afinal melhor que qualquer construção feita antes, quando as palavras eram o único elo entre eles? 

-Amo-te. Redescobriu-o sem querer. Amo-te, que queres? 

O destino, esse mestre da ironia, havia-lhes dado o único presente que nunca tinham desejado. Mas o amor não era afinal renascimento? O amor não era afinal a renascença, a alegoria primaveril de Boticelli, as suaves brisas ao vivo, o reverso da teoria? 

- Não me quero em ti condensado no degelo da palavra escrita, no silêncio que tudo diz: o que se ganha e o que se perde, aqui na hora. Não te quero em mim, apenas um olá pela manhã ou um adeus pela noite. Quero-te antes, em tudo o que existe de permeio. Entendes o que quero? 

Pedro roubava-lhe a pergunta que ela havia feito antes. Joana roubava-lhe também a resposta. 

-Entendo. 

Nas ruas, na chuva, nas gargalhadas, nos abraços que desfazem a aflição, eles drenariam a aflição. Todas as aflições. 

- Quero-te nos meus olhos, em tempo real, ao vivo e a cores. – Garantiu Joana. 

- Não imagino o que sou para ti. – Pedro beijou-a, os olhos azuis pousados nos dela, várias vezes repetindo a palavra “desculpa, desculpa, desculpa.” - Mas sei que não me queres a entrar em ti, dissolvido numa sopa de letras, nem eu te quero a ti esparramada num lençol de palavras que todos os dias me dizem tudo o que o amor é ou devia de ser. 


FIM

Ana Kandsmar


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