Morreste-me...

Avó…não te digo nada que não te tenha dito antes. Entre nós não ficaram coisas por dizer. Amo-te, amo-te. Disse-to tantas vezes. Ouvi-o de ti tantas vezes. Fomos tão felizes, avó. 
Eu e tu, tu e eu. Não há nada que o meu coração não guarde de todos os dias que partilhámos nesta Terra. É o teu rosto que me acorre às primeiras lembranças da infância, a tua voz a chamar por mim, o teu riso a fintar as tuas tristezas, as tuas mãos ásperas, calejadas, as tuas mãos terra sobre a minha face, enxugando lágrimas.

O teu café de borras, avó…ainda lhe sinto o gosto. E aquela aragem fina que passava pelo meio dos pinheiros quando caminhávamos juntas nos dias em que carregavas lenha. O mosto condensado nas tuas mãos em dias de vindima e as tuas cantigas que afastavam o cansaço. Tudo em ti é agora a mais terna das lembranças, mas não viveste em vão, avó. Não foi para nada cada dia em que acordaste, nem se reduziu à insignificância cada vez que respiraste. Eis-me aqui: a semente que atiraste à terra e germinou. 

Não viveste em vão, avó. Tão pouco se morre quando se é a luz de alguém e tu iluminaste o meu caminho por mais tempo do que te foi possível alguma vez imaginar. Se alguém soube nesta vida encarnar o amor, foste tu avó. Tu e esse coração grande onde cabia tanta gente, mesmo quem teimou em fugir-te. Tu guardaste. Cada filho que cuidaste e amaste levas agora para a eternidade. Cada neto, avó. Cada amigo. 

E hoje, se diante de mim se abrem as ruas despidas da aldeia, as nuvens que enegrecem o céu e a chuva que será o teu primeiro manto, é porque te amei, avó. É porque te amei que hoje é um dia triste e o tempo ficou parado. Ficou parado nos teus olhos, avó. Nos teus olhos claros de névoa e maresia, os teus olhos oceânicos que me engolem e afastam da terra molhada.
Prometo-te que jamais serás um rosto tornado desconhecido, desfigurado pelas brumas do tempo. Nunca te esquecerei, avó. 
Ficam comigo o lenço que te cobria os cabelos, as tuas palavras doces, as histórias que me contavas. Lembras-te, avó? O crocodilo faminto que comia ovos mexidos, a raposa que era esperta mas não tão esperta como a garça, a lagarta que espirrava e espantava os pardais... Histórias rendadas, como retalhos de panos floridos que as tuas mãos costuravam até criar cobertas. Fica comigo a tua voz melodiosa que cantava canções à lua e às cearas, aos caminhos sinuosos da charneca. Fica comigo a tua força, a intrepidez com que afugentavas o suplício do esforço e do cansaço, as dores nas pernas, nas costas, na alma. Ficam comigo os mantras que me ensinaste. As ladainhas que pediam a Nossa Senhora, milagres e alimento. Fica comigo para sempre a tua imagem, avó. O calor e o cheiro do teu corpo, os teus conselhos amorosos e as tuas mãos, avó. As mãos que amassavam o pão, que me enfeitavam com colares de pinhões e me convidavam a dormir na mais doce alcova, o teu regaço. Morreste-me, avó. E contigo morreu-me a mãe que me foste duas vezes, tantas vezes, todas as vezes, mas não me morreu o amor que se fez laço e nos estreitou pela vida fora. Obrigada. 

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Tudo em mim, ama tudo em ti.
💖💖💖

Ana Kandsmar




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