Alteridade da Ficção

Já faz tempo que não te escrevo. 

Decidi-me a parar por uns tempos, dedicar-me a outros registos que não me obrigam a tirar as palavras das entranhas. 
Elas têm estado como a minha vontade de te escrever: Quietas, como um bicho à escuta. Vai daí, eu tropeço em qualquer coisa tua e mexo-lhes. Às entranhas. É por isso que me saem agora em remoinhos de dor pela boca, às golfadas. Preciso de as serenar antes que a dor se infiltre outra vez nas minhas reentrâncias, nas reentrâncias da própria dor que se come por dentro. 
Ter o que te escrever, contradiz-me, é certo. Logo eu, que me tenho alimentado a restos de silêncios e detritos de lembranças mudas, não devia recomeçar agora com este enredo de palavras gastas. 
Na verdade, quero lá saber se em tempos me chegaste à curva do pescoço com beijos distraídos…ou se me soltaste letra a letra, da prisão das minudências do dia-a-dia e se eu te ansiei pelo gesto que assegurou a pertinência do amor…na verdade, depois de depositados os beijos, as palavras espreguiçavam-se, meio sonolentas, e abriam-me a boca devagar. Preguiçosas, não saíam. Voltavam às entranhas, como se depois de espreitarem o tempo lá fora se recolhessem, encolhidas de frio. 
Foi quando deixaste de depositar os teus beijos no meu pescoço que elas acordaram. Respiraram como um vinho velho depois de aberto. Não obstante, a tendência que sempre tive para as calar fundo, por defeito e por feitio, treparam-me e contrariaram-me, qual salmões subindo o rio na desova, e eu escrevi. Primorosa e conscienciosamente. Não sei se feliz, porque afinal nunca inventei histórias felizes. E com todas me condoí. A única coisa que eu sempre quis, no fim de cada uma: voltar para a cama e envolver-te o ressonar com os braços mornos, confortada com a alteridade da ficção. 
Lá fora, haveria de chover. Tu haverias de estender-te ao comprido, com os pés no meu colo, enquanto os meus dedos andassem para cá e para lá ao longo do teclado. Centenas de palavras haveriam então de me fluir fáceis, predominantes, eloquentes. 
Mas não…ao teu lado elas passaram a vir forçadas, com hora certa, demarcadas da escassez notória do tempo que me exigiam, porque to dava a ti. 
O teu beijo, cada vez menos distraído e mais compenetrado da sua condição de beijo, selava-me as palavras. 
Por essa altura, eu já não dormia e caminhava por negras veredas, meio cega, perdida: um espectro dentro de um corpo, um sopro de vida, o reconhecimento apenas da fome. As palavras, deixei de as experimentar antes de as usar; de as provar, de lhes testar a síncope, pois tanto fazia, e, por fim, arrumei-as inúteis a um canto. 
É surpreendente que, em oposição, tenha sido precisamente a escassez do teu beijo a fazê-las jorrar de novo, livres… como as águas impiedosas de uma cascata. Partiste e devolveste-me o léxico, o talento, a vontade de acordar com o sol e de conversar com Deus. Percebes agora o quanto precisei de ti para chegar até elas?
 Era preciso dizer-te muitas vezes “amo-te”, para que eu entendesse em definitivo o que a palavra Amor queria dizer.

Ana Kandsmar

Menina, Chuva, Feminilidade, Beleza, Paris, Sensuais







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