Grimório

Como toda a gente, tem segredos que a ninguém confessa. Há um, porém, que numa espécie de superstição guarda com especial cuidado, não vá a revelação materializá-lo no presente e, a reboque, instalar no quotidiano os seus efeitos nefastos.

Quando o caos se instala, e o mundo ameaça desabar, pega no carro e conduz, invariavelmente, rumo a lugares incertos com paisagem certa: o mar. Sempre o mar. Desmonta um sorriso atordoado e uma frase feita. O mar é sempre o seu capricho súbito, uma vontade que lhe vem de um pensamento ao calhas. 

O rádio ligado é afinal uma companhia. A música acalma-lhe a angústia e a brisa, nos cabelos, relativiza-lhe os problemas. O sol, mesmo quando não brilha, ilumina-lhe as ideias e a humidade − vinda do oceano − refresca-lhe as emoções. Varre-a, então, um tremor ligeiro, um rumor volátil, quase como um boato nas bocas do mundo. Lembra-se de que não deixou um inconsequente e tardio bilhete suicida. Sacode os ombros e resigna-se à estupidez. “Nem um breve espasmo em quem o lê”, não, nem isso deixaria para a posteridade. Agora é tarde, já não adianta.
Chega ao local e estaciona, mesmo ali, perpendicular às rochas, à espuma das ondas, e fica a ver o voo picado das gaivotas e a invejar a sua leveza. Vê-as planar, aproveitando a força do vento, num bailado dessincronizado, mas perfeito. A gravidade que perdeu o mistério à pala das explicações científicas ainda a fascina, como se de um segredo se tratasse, bem guardado nas páginas de um qualquer grimório. 
Qual passe de mágica, as descolagens arrojadas que a enganam e que logo são substituídas por aterragens elegantes. 
Ela fica, ali, no meio das aves, num exercício sobrenatural de criatividade, a elevar-se com elas no ar e a cortar o céu com a mesma veloz graciosidade. Porém, dá-se conta, sofre do mal de ser pouco, qual pescador de corrico, de chumbo leve e de mar sem enchios. Rasa afinal a superfície, como que a ver se morde, mas desiste rapidamente. Far-se-ia então, hoje, um bicho de águas profundas. 
Quando a melancolia se sobrepõe à intensidade da luz que a cerca, só sente a brutalidade do vento que se desprende na sua direcção, e então um vislumbre oblíquo. Um vislumbre de dias felizes, uma felicidade ingénua que lhe assentara quase bem, como um cachecol piroso em dias de invernia.
Fecha os olhos e sente a espuma bravia do mar que lhe salpica o corpo e penetra os lábios. Sente o vento despentear-lhe os cabelos enquanto lhe sussurra ininteligíveis segredos ao ouvido e o cheiro da maresia invade-lhe, violentamente, as narinas até ao cérebro e arranca-lhe a imaginação para alto mar. Depois, abre novamente os olhos e deita-se na areia. Mergulha, então, por ela adentro, numa movediça incursão ao centro da Terra, ao seu calor, ao seu âmago, ao seu sentido de ser… E, sem resposta, acorda − já calma e humana − no carro que conduzira e que estacionara, ali mesmo, perpendicular ao oceano, uma espécie de redoma vítrea, onde, temporariamente, todo o mal tinha solução e todo o caos era ordem. Pelo sim, pelo não, vai ficando. Deixa-se saber do tempo para o dia seguinte que, sim, ainda valeria a pena sondar a vida e as suas múltiplas sincronias, ainda que a viagem lhe pareça, agora, sempre entrecortada por exasperantes soluços.

Ana Kandsmar in Somos Imortais, mas Temos que Morrer Primeiro




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