Libertação

O tempo impunha-se-lhe. Pesava-lhe. 
O tempo teria que ser agora ou então, nunca mais. O tempo não seria piedoso, nunca o fora. Naquele momento, como em todos os momentos continuava a torturá-la. Sobretudo, porque o tempo era para ela como que uma massa contraída, de um fole dotado de pregas profundas e inúmeras - tinha a certeza de que mais ninguém olhava assim o tempo, como ela - e via-se obrigada, para o conseguir ultrapassar, a contar cada uma destas dobras do tempo; e no seio de todas elas ocultavam-se todas as diversas formas que a dúvida pode assumir, cada uma com as armas que lhe são próprias; e o trabalho de discutir com elas ou de as ignorar, ou de as derrubar para seguir em frente, exigia da sua parte um esforço extraordinário. 
O tempo que era para ela como um abismo para onde se esquivava de olhar, mas ainda assim, olhava. E era esse relampejo fortuito o que ela mais temia: ver-se ali, outra vez, à borda do rio, de joelhos, a implorar… aquele homem, de verdasca numa mão e pénis na outra, pronto a sufocar-lhe o ar, a voz, o choro. Se o calor sufocante e alaranjado não a roubassem rapidamente àquela dobra nefasta do tempo, ela continuaria ali, por muito tempo, a esvair-se na dor e na vergonha, na raiva e na humilhação. 
Ele dormia. Sufocaria, entretanto, com o fumo que ganhara uma intensidade nebulosa e agonizante. Aqueles estalidos das estruturas da casa a rachar, os móveis que entretanto cediam às chamas e crepitavam, como se em regozijo orgástico quando lambidos pelo fogo, provocavam-lhe um misto de prazer e de culpa. Teria ele também sentido o mesmo? Um misto de prazer e de culpa? Como teria vivido ele, todos estes anos, sem se permitir carcomer-se pelo remorso e pela indecência? E ela? Como viveria os dias seguintes, os anos seguintes sem deixar-se consumir também por ambas? 
O tempo impunha-se-lhe. Pesava-lhe. O tempo teria que ser agora ou então, nunca mais. Esperaria até que a manhã raiasse e revelasse o seu corpo em cinzas ou entraria na casa, desafiando o inferno que a consumia, para salvar o próprio diabo? A noite não lhe proporcionaria uma espera inútil. A luz haveria de nascer e com ela, a sua libertação.


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Ana Kandsmar in Somos Imortais, mas Temos que Morrer Primeiro




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