Um Mar de Alívio

Gosto tanto de a ler e sinto-me profundamente triste por não ter o mesmo engenho com as palavras. Para ela, parecem fáceis, numa fruição rápida entre a mente e as pontas dos dedos, sem perder nada, tudo ali a fazer sentido e com sentido estético. Impressiona até pelo sentido estético. 
Escreve belo do feio. Que é lá isso, tratar assim as palavras, da fealdade escrever beleza… Ela consegue. Escreve hoje sobre a Lua Cheia. Faltam sete dias para a Lua Cheia, diz. E diz ainda que não gosta da Lua Cheia. Muito menos do folclore místico das bruxas. Parece que a vejo bater o pé, embirrando com os halloweens, os carnavais e a bem ver, pelo mau feitio, as festas de aniversário. Todas as festas em geral. Quando há festa noutras casas há silêncio na casa dela.
 Quando existem risos à volta de outros, há dor à sua volta. Brindes, luzes, vozes de crianças enchem outras salas, mas é o vazio que lhe preenche os espaços entre as quatro paredes. Faz frio. Põe-se o sol e ela diz que gosta de dias cinzentos. Que as temperaturas descem a pique e que, por vezes, o vento sopra furioso. 
Entusiasma-se a ver as ondas revoltas do oceano a rebentar na costa, galgando muros, arrancando pedaços à memória dos dias felizes. 
Foi-se-lhe embora o Amor e ela não o esconde. “Olhem, sou eu, cortei os pulsos! Este é o meu sangue, a minha vida, o meu infortúnio”. 
Nunca esconde nada. Não usa máscara. Não lhe apetece fazer de conta. Mostra-se como é por dentro. Os vermes que tem, as bactérias que a habitam, o pus que a infecta, como são feias as suas entranhas. Exibe os defeitos, esfrega-nos as suas imperfeições, espeta-nos na cara as cicatrizes que lhe mapeiam o corpo; a alma.
 Parece dizer a todo o instante: “Esta sou eu, é pegar ou largar!” Não sei se o faz porque se cansou de fingir ou se, na verdade, nunca se deu ao trabalho. Sim, fingir dá trabalho. Mais simples é mostrar que não é feliz, que não é perfeita, que não é bonita. E que não há vergonha nenhuma em assumir que a visitam fantasmas, que guarda esqueletos no armário, e que a atormentam pesadelos. Que às vezes bebe, noutras fuma, outras ainda se masturba, quase invejando o prazer sugerido na pornografia. 
Está-se nas tintas para se chora e é olhada assim, com o ranho a resvalar para a boca. No fim de contas, cada frase que a desnuda é tão boa, talvez porque genuína, corre-lhe no sangue para o chão… Um rio. Uma poça. Um lago de sangue. Um mar de alívio.

Ana Kandsmar In Somos Imortais, mas Temos que Morrer Primeiro





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