Anda cá, regressa ao meu útero, não te quero fora, onde cresces e me desamas

Podia inventar um mar de rosas do que é ser mãe, esconder as penas atrás de uma argamassa de sorrisos babados ou, então, desvendar o fardo para que todos vejam que não foi o diabo que vos carregou, fui eu. Mas às vezes, (tenho dias) que do que gostaria mesmo, era de inventar uma forma de nos conhecermos outra vez, regredirmos àquele momento em que o meu corpo se rasgou para vos dar ao mundo e a partir daí, refazer tudo, atirar para fora do caminho que já percorremos, todos os erros, todos os dias azedos, cinzentos, dias de chuva, em que senti o vosso amor por mim a meio termo, em quarto minguante. Ver-vos crescer não é (para mim) a melhor coisa do mundo, desculpem lá. 
Hoje, já são maiores e vacinados, a maioridade deu-vos a vida, a vacinação dei-vos eu mas, infelizmente, não aquela de que precisam para ficarem imunes à maldade dos outros, à descrença, à desilusão que é sempre tanta e vem de tantos lados, improváveis e surpreendentes lados…enfim, habituem-se, porque isto de viver não é fácil e a maior parte do tempo andamos a arranhar os joelhos. 

Um e outro vão começando a entender que isto de poderem dizer-me “não”, legitimando essa ilusão chamada maioridade legal é afinal uma faca de dois gumes bem afiados. Hoje, sabem que podem fazer a trouxa, bater com a porta e nunca mais olhar para trás, mas saibam que isto de ser mãe é uma coisa que se nos atravessa a carne, e se nos implanta na alma. Nunca mais sai de nós. E é por isso, por causa de acoplarmos em nós essa missão de cuidar, de amar e de dar tudo, até o que não temos, vos torna a vocês- os filhos- a razão, não única, mas a mais importante, de eu acordar e respirar todos os dias. 

Vocês são tão diferentes! Tu, Rafael, nasceste a ironizar a tua própria existência, sempre parco na exteriorização dos sentimentos e tão profícuo em porquês. A tua curiosidade tão aguçada, tornou-te um sábio. Não que não erres por vezes, note-se. Erras e muito, mas como andas sempre em busca de respostas, transformas quase sempre, os teus erros em acertos. Sortuda daquela que te ocupar o coração, porque ocupará um coração puro. De ouro. Já nasceste forte, grande e intelectualmente independente; a fazeres-me acreditar tantas vezes que precisava eu mais de colo, do que tu. Se calhar, por isso, nunca gatinhaste e puseste-te logo de pé; como Zeus, nasceste adulto, poeira e vento, pancada e guerra, comida sólida, a mão dada à irmã mais nova com medo que ela atravessasse a rua sem olhar para os lados. És preguiçoso quando se trata de procurares o que te faz feliz, mas és prestável, um pacificador, e tens uma alma boa como a de um passarinho, por isso não te entendo quando cospes amargura e um tornado se alevanta do nada, abatendo a frágil pirâmide humana na qual nos sustentamos uns aos outros. 
Já tu, Mariana, minha doce Mariana, o riso sempre pronto, a alegria a soltar-se por entre a falha dos teus dentes de leite, num mundo só teu que me deste a honra de partilhar sempre que entendeste ser a hora certa. Vieram tempos de turbulência, essa maldita adolescência que grita à mãe “odeio-te, odeio-te!”, remetendo a mãe para as dores do parto, procurando a mãe o cordão umbilical, ainda aquela ligação à placenta, “anda cá, regressa ao meu útero, não te quero fora, onde cresces e me desamas”. Mas magoaste-te um bocadinho e agora aceitas melhor o meu colo, como se finalmente precisasses dele. Raramente choravas, e mesmo quando não dormias eras uma acordada feliz. Até teres quase três anos os teus olhos foram celestes e depois escureceram aos poucos, mas nunca deixaram de iluminar o teu rosto redondinho, emoldurado por caracóis quase louros. Foste um anjo da capela sistina. 
Tempos houve em que descobria pela casa, paredes pintadas; rabiscadas; livros rasgados. Depois, descobriste-me os batons e os rímeis, e toda a parafernália de maquilhagem, com que te besuntavas, assim mesmo, a cara toda, numa alegre, mas firme demonstração da tua condição de género: Tão menina, tão menina! 
És, Mariana, a resposta sempre pronta e afiada, e nisso tão igual ao teu irmão, sarcasmo inesperado; irónico, mas também, quase sempre com piada. Andam os dois, à vez e às vezes, sorumbáticos (a vida, entretanto não vos foi de modas), e aquilo que vos digo é que é preciso que alijem o fardo que carregam, despejem os vossos detritos, se querem pelo menos, de quando em vez, respirar melhor. 
No silêncio, um e outro, custam-me mais. Às vezes acho que nada sei sobre vocês. Mas é só porque não fingem, e a verdade é algo de que os adultos se vão esquecendo com os anos. Tu, Rafael, que não tens a sobrecapa dos outros, os outros que já perderam suficiente inocência para conseguirem agradar ou ferir de propósito, és honesto no teu silêncio de dias, e eu sei que não o fazes por amuo ou outra qualquer estultice, o que me assusta, porque tudo em ti se tornou demasiado sério. És criterioso como um homem de cinquenta anos, que faz um novo amigo a cada cem pessoas que conhece; não papas grupos, não te revês em modas, e resistes teimoso, mesmo que o resto do mundo pense o contrário. 

Depois, há dias em que não te calas, e é o mundo e a Síria; e os hackers e o espaço sideral; o Trump e a crise das coreias; Timor e o Brasil; a moral e a ética, e por fim, mas a mais importante: a Portugalidade. É comovente o amor que lhe tens. E nisto tudo, sinto a falta de, quando ser tua Mãe me parecia tão mais simples, quando desenhavas monarcas e catedrais, quando construías cidades inteiras para laboriosas formigas e tinhas aulas de piano. 


Penso, muitas vezes, que não consegui acompanhar-te na corrida, porque a tua cabeça abre-se como uma flor carnívora que se cansou de mastigar as coisas e agora regurgita o que acumulou em anos de atenção e aprendizagem. Tudo cá para fora, porque, entretanto, o silêncio foi demais, porque ninguém sabe dos teus pesadelos, e porque a vida afinal é bonita, ainda que incoerente e injusta, e toca de alinhavar palavras, já que vieste com o dom de as usar. Sinto, às vezes, que só me restam tentativas vãs de apanhar do chão o que vais largando, de gatas; de costas; a fazer o pino; a tentar compor puzzles que me façam sentido. 

Desde que te conheço que tento perceber o que dizes, com tanta convicção. 
Quando aprendeste a articular as palavras que te assoberbavam, precoce como em tudo, conjugavas os verbos no pretérito perfeito, enumeravas de trás para a frente todos os reis e rainhas, os feitos e os cognomes, em que século e em que ano. Tudo ali, escarrapachado ao mais ínfimo detalhe, o que fazia de ti quase uma atracção de feira. Talvez, por isso, quando te pedia para exibires os teus talentos, para a família e amigos, declinavas inabalavelmente o convite e viravas-me as costas com uma espécie de mágoa. Que saibas do quanto eu gosto que continues a disparar as piadas mais certeiras do mundo, aquelas que fazem sucesso cá por casa ou entre os teus amigos, embora nem sempre agradáveis aos alvos escolhidos. És sarcástico o quanto baste, o que só denuncia a extravagância do teu Q.I. 
Entretanto, cresceste que te fartaste! Cada vez mais sério e ponderado (apenas no que te convém, que é ver-te a picar a tua irmã ao ponto de a levares às mais desesperadas posturas de guerra), dás-me conselhos telegráficos que me deixam dias a pensar, “raisparta o puto”!


Quando nasceste não dormias, lembras-te? Claro que não te lembras. Durou um ano. O teu primeiro ano em que quase me morreste nos braços. E ter-te assim, frágil e quase morto, fez-me mudar tanto que até mudei de feições: agrosseiraram-se com os esgares penosos da vigília permanente. Ganhei esta ruga entre as sobrancelhas, como se sempre apreensiva, e estas olheiras cavadas como buracos na terra. Houve um laço, melhor, um nó górdio, que se formou nas noites em que te embalava entre mamadas e conversa. Dei-te sempre o melhor de mim. E se hoje geres com essa imensa discrição a revolta do abandono, é porque a vida te permitiu existir, graças a quem, não soube dar-te o melhor de si.


Ambos são hoje, um e outro, homem e mulher feitos, mas eu continuo e continuarei, noites e noites acordada, tentando perceber as vossas singularidades; tagarelices; o que me querem dizer; o que raio tudo isto significa para vocês; esta viagem que encetaram ao meu lado; a corrida dos dias que já somaram anos, eu. Incluindo eu. 

Quando pequenos, criavam mundos imaginários com toda a panóplia de bonecos que juntavam nos vossos quartos. E por vezes, percorriam com eles o desenho dos tapetes, gesticulando e berrando, com prosaico entusiasmo. “Vamos partir o mundo!” Não chegaram a partir o mundo, e eu nunca me ofereci para partir o mundo convosco, desculpem, para isso não sirvo (como para tantas outras coisas). Mas parti-lo-ia por vós, isso sim, que isto de ser Mãe também nos dá ganas de exterminar um planeta inteiro, se isso significar que a vossa vida segue conforme os planos e nunca, nunca corre perigo. 
Com amor,
A Mãe
Ana Kandsmar 


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