Austeridade



Aos domingos de manhã voltava à igreja. Em silêncio, de joelhos dobrados sobre o genuflexório, a testa pousada sobre as mãos unidas, pedia fervorosamente aos santos que a observavam, que a ajudassem a refazer a vida. Era uma merda de vida, aquela que se lhe apresentava todas as manhãs. Não era só a falta de dinheiro,mas a falta de perspectiva que mais a amargurava. A estagnação era como uma teia em que se sentia presa, emaranhada num novelo áspero de desilusão e incerteza. Volta e meia sucumbia ao medo. Sentia-se banhar em suores, o coração começava a bater muito lentamente, cada vez mais lentamente, como se lhe fosse parar e o ar faltava-lhe. Ela abria a boca para o procurar, ao menos que lhe entrasse nos pulmões algum resquício de oxigénio, mas o oxigénio fugia-lhe. Escondia-se agora, quiçá, atrás dos santos que lhe deitavam olhares condescendentes ou no interior da caixa das hóstias, encolhido; ou descia sub-repticiamente pelo ralo da pia batismal. Tanto fazia. Aquele lugar, ainda que sagrado, era tão bom como outro qualquer para lhe roubar a vida.
Tirou-a do tormento e da falta de ar, a tosse da Srª Dona Cremilde. A Cremilde que já tinha perto de 60 anos era uma Srª Dona de pleno direito. Vivia faustosamente da reforma de viuvez, numa vivenda sumptuosa nos arrabaldes da cidade. De manhã passeava o cão. Um caniche branco de focinho afilado e pequenos dentes pontiagudos que faziam lembrar agulhas. No resto dos dias, matava o tempo a gastar a gorda reforma nos restaurantes que serviam comida de inspiração italiana. Sentava-se amiúde nos bancos da praça a ler suplementos dos jornais, e parava regularmente no quiosque a comprar guias gastronómicos. Sim, a Srª Dona Cremilde, alta e obesa, era um bom garfo. Imaginou-a a chupar, com ruído, a esparguete suculenta, e o molho vermelho do tomate a cair-lhe em pingos grossos pelo queixo.
Acreditava que Cremilde fazia listas dos pratos mais calóricos e que, enquanto a fazia, salivava. Durante a semana, saltava de restaurante em restaurante, ao almoço e ao jantar, e fazia por evitar os sem abrigo que, frequentemente, ignorava quando estes, às portas das casas de repasto, lhe pediam dinheiro ou comida. 
Costumava vestir saias compridas de cintura alta, de bom recorte; túnicas largas de seda; adornava o pescoço com colares de pérolas e escolhia pochetes brilhantes. Rematava o look sofisticado e chique com um blushe cor de pêssego no rosto e passava um baton carmim pelos lábios. Sentava-se sozinha em restaurantes de ambiente elegante e descontraído, frequentados por homens de barba aparada, ligeiramente adamados e mulheres que como ela, já viúvas, mas não acabadas, faziam tilintar os metais preciosos das pulseiras nos copos de cristal. A Cremilde, a srª Dona Cremilde tomava então para si a coreografia da etiqueta e limpava, com as pontas dos dedos, os cantos da boca a guardanapos de pano, beberricava rosés frutados, tintos robustos ou brancos frisantes, mantinha a conversa acesa com as amigas que entretanto se lhe juntavam, falava dos mexericos em voga, dos escândalos que norteavam as vidas das figuras públicas, as que faziam as capas das revistas; mandava bitaites; julgava saber de tudo o que era importante saber. 
Depois, cansada da análise fútil da vida alheia, mudava o foco. O empregado de mesa que lhe servia cordialmente o café..."Que ar desolador! Roçava o desleixo. Haveria ali higiene? Quanto ganharia? O salário mínimo? Quanto era o salário mínimo? 500? 600? Um horror! O que comeria aquela criatura? Como é que alimentaria a família?" E suspirava, languidamente, antes de concluir “a vida boa não pode estar ao alcance de todos…era o fim se estivesse…quem nos serviria, se estivesse?” E por fim, acordava na essencialidade da austeridade, alongava-se em análises profundas sobre a crise, desfiando, como se fossem seus, argumentos lidos em colunas de opinião. Arrumada a situação económica do país, passava outra vez para temas mundanos, que já chegava de misérias e não queria estragar o almoço. De rompante, entravam para a dissertação as férias em resorts turísticos, os cruzeiros pelo Mediterrâneo, as marcas de roupa, as melhores griffes, os colégios privados onde estudavam os netos. 
De viés, sem conseguir esconder o incómodo, olhava os empregados de mesa, quase estranhando a presença daquelas criaturas que, submissamente, lhe estendiam bandejas de prata. Os uniformes, pretos e brancos davam-lhes a pele de pinguins a cirandar sobre uma placa de gelo, e ela, ali tão elegante, volta e meia deixava escapar suspiros que variavam entre o tédio da visão e a impaciência da espera. “Que estranhas criaturas são os pobres, os serviçais.” 
A Cremilde, a Srª Dona Cremilde volta a tossir. E uma tosse na nave da igreja multiplica-se. O eco quase que eterniza o som. A Srª Dona Cremilde limpa a boca ao lenço finamente bordado a ponto de cruz. Ouve-se um baque seco sobre o estrado, o último bichanar da oração, talvez um Pai Nosso roboticamente reproduzido. Estava salva a alma da Cremilde. Talvez até, se ela tivesse rezado com convicção suficiente, que já nem se fala de fé, só a convicção bastaria para a alma da Srª Dona Cremilde também estar . Todos os seus pecados magnanimamente perdoados. E no entanto, a ela, cuja vida acontecia nos antípodas da confortável bolha da Srª Dona Cremilde, só apetecia uma hóstia. Lembrava-se agora... ainda não tinha tomado o pequeno almoço. Por falar nisso, nem jantado no dia anterior.

Ana Kandsmar

Oração, Mãos, Igreja, Luz




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