666

"Tal nunca me tinha acontecido. Não fazia a mais pálida ideia de como acontecera. 
A bátega que se adensara ter-me-ia distraído; as mãos sempre a fugir do volante para desembaciar o vidro; a poça no alcatrão que afundara inesperadamente e me fizera perder a direcção; o borrão do cigarro que me caíra no colo… não sabia. Mas sabia que sentira o carro bater em qualquer coisa.
A princípio duvidara que fosse um corpo. Mas logo a seguir, uma espécie de gemido entrara pelas frestas do vidro, que relutantemente entreabrira, e segredou-me qualquer coisa ao ouvido.
Fiquei à espera. Do silêncio. Ou da coragem, não sabia bem. Na verdade, temia sair do carro e encontrar ali um corpo ainda com vida a suplicar-me ajuda. Veria certamente a pedinchice a pingar dos olhos da minha vítima, e eu detestava ver pedinchice a pingar dos olhos de alguém. E temia também encontrar ali o anjo da morte com a sua foice e que ele, para castigo, me levasse a mim e não ao corpo estendido no chão. Voltei a ligar os faróis do carro, olhei em volta com os olhos arregalados; deixei os ouvidos à escuta por mais alguns minutos na expectativa de despistar qualquer ode celestial. Não. Não havia ali ninguém. Nem do céu, nem do inferno. E, contudo, o homem, sim era de certeza um homem, ainda ali jazia.
Quando sai do carro percebi que havia uma poça de sangue no alcatrão. O sangue era espesso. Imaginei-o de uma mornidão confortável.
Olhei em redor e para cima. Os prédios dormiam sossegados e o vento da madrugada restolhava nas árvores feias do bairro. Olhei mais uma vez em redor e não viu ninguém. Ninguém, à excepção do corpo volumoso e inerte, que minutos antes se atravessara à frente do carro. Estava de borco. Tinha os olhos fechados. O rosto quase mergulhara na poça, e tanto quanto me era dado a perceber, não respirava. Sabia, obviamente, quem era e uma onda de calor invadiu-me o corpo. Senti gratidão. E a gratidão levou-me instintivamente a passar os olhos pelo relógio, só para confirmar se haveria naquela conjugação de horas, minutos, segundos e milésimas de segundo, alguma capicua que me mostrasse que, se havia ali mão criminosa, era do destino e não minha. Com efeito, nada vi no relógio que me apaziguasse a alma, mas quando voltei a cruzar o horizonte, pousei os olhos na porta da tabacaria. 666. Uma capicua.
Respirei fundo e acendi mais um cigarro. Voltei para casa e adormeci. Dormi como há muito não dormia. Não sonhei com longas labaredas, nem senti o cheiro do enxofre. Não sonhei que caía de um prédio com quarenta andares; que estava no interior de uma nave e aterrava no planeta dos macacos. Não sonhei que fazia amor numa praia deserta, não senti as pernas húmidas a contorcerem-se no meio do algodão da roupa, nem rebates de consciência. Tive uma noite sem suores nocturnos, pacífica. A realidade só voltou a impor-se quando, na manhã seguinte, voltei à tabacaria 666 e o morto me vendeu, como de costume, um maço de Marlboro."

Ana Kandsmar in "Somos Imortais Mas Temos que Morrer Primeiro".


Besta escarlate, 666, Chifre Pequeno: como entender profecias?


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