Misantropia



Não, o vírus não nos tornou pessoas melhores. Nenhum vírus será capaz de nos tornar pessoas melhores. Nem um terramoto, nem um tsunami, nem vulcões ou furacões, nem meteoritos, nem uma nova era do gelo. 
Enquanto existirem humanos eles continuarão a ser os humanos que sempre foram: avarentos, egoístas, egocêntricos, desumanos. É essa dicotomia que nos dá forma. A humanidade sendo desumana. A desumanidade, é o que talvez, ironia das ironias, nos torna humanos. 
A promessa de que nos faríamos melhores foi só uma promessa. Seguimos iguais ao que sempre fomos. A ética é só uma ideia que não praticamos. 
Depois de dois meses de clausura, maravilhados com os sinais de liberdade da natureza, as papoilas nos passeios, os cervos nos jardins, os golfinhos nos canais, os pássaros em voos mais afoitos e pigarreando mais alto, os céus libertos de poluição e voltam os humanos à vida de sempre, ávidos por consumo, ávidos por Zaras e Mangos e por viagens e hotéis, por ter, por ter, por ter. Mais, mais e mais. Voltamos à rodinha. Voltamos à loucura colectiva do consumismo e expulsamos outra vez os golfinhos dos canais e os cervos dos jardins, matamos as papoilas nos passeios e silenciamos, com o nosso ruído, o pigarrear das aves que se afastam dos céus que voltamos a poluir.
Está tudo mal, mas a moda primavera/verão não nos permite reflectir sobre o quanto estamos errados. 
O novo gadget é mais importante que uma floresta verde e o hedonismo de uns impera sobre a moderação de outros, o luxo de uns impera sobre a fome de outros. Somos o problema, mas não estamos disponíveis para nos resolvermos. 
Somos o perigo, mas não nos tememos.
Obstinadamente, avançamos sempre em direcção ao abismo, não importa quantos desvios o planeta (ou Deus, se Nele acreditamos), já exausto, vai pondo no nosso caminho.


Ana Kandsmar


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Perdição de D. Sancho II, Paulo Pimentel

"Travessia no Deserto"