Somos Imortais, mas temos que Morrer primeiro






Imagino que em breve a neve volte a cair. Ouves o Alexandre? 
“Somos um soluço do acaso”. Concordo. Somos. 
E, todavia, a felicidade é uma erva daninha que cresce até em corações inférteis…e sim, o meu é infértil como a terra árida de um deserto. No fundo, sou apenas um prego cravado a furtar-se à dor. 
Costumava acordar cedo, ainda as manhãs se espreguiçavam no horizonte, mandava uns bafos para o vidro embaciado, limpava-o com as mãos e espreitava a rua. Como vês, eu era uma formiga. Não era assim que me vias? Não era assim que te sentias, a espreitar a vida de uma formiga? Agora está a nevar e pelo meio dos flocos de neve espreitam raios de sol. E logo a seguir o sol esconde-se. Depois, pelo meio dos flocos de neve espreitam os pingos da chuva. 
Eu entendo-te. Tem o seu interesse espreitar a vida das formigas. Estudá-las até. Eu estudava-as, sabias? Com uma lupa, às vezes. Quando era mais pequena, nessa altura sim, usava uma lupa e espalhava-lhes açúcar nos carreiros só para as ver naquela azáfama, a acartar…nunca sentiste que eu também andava sempre naquela azáfama? Sempre a acartar alguma coisa? Sempre a fazer alguma coisa?
Levantava-me para ir tomar o pequeno-almoço à cozinha. Os pratos ainda estavam no lava-loiças. Nevava, não era? Pensava na neve enquanto mordiscava os cantos de uma torrada e bebia café. O gato, que por ali tamborilava as patas na madeira parecia ser o único que se predispunha a dar-me dois minutos de conversa às 6 da manhã. Miava como se tivesse muitas novidades para me contar. Devia ter. Tinha andado desaparecido uns dias. Eu é que não lhe percebia patavina. Fazia amiúde o que me apetecia, tantas vezes, fazer: desaparecer. 

Tenho uma amiga que faz isso. Desaparece por uns tempos durante semanas, às vezes meses. Depois reaparece renovada. Não, não se enfia numa gruta no alto de uma serra ou no meio de um bosque cerrado. Em vez disso, sai para o mundo. Invade-o. Desaparece da vista de quem lhe é habitual, de quem lhe é a rotina de todos os dias, mas desmembra-se e dá-se em bocadinhos a quem nunca pode contar com a sua presença por inteiro. Anda pelo Quénia e pela Somália, pela Índia e pelo Tibete, pela Rocinha e pela Vila Madalena. E adapta-se a todos esses lugares que lhe são estranhos com a mesma capacidade de encaixe que tem uma peça de um puzzle no sítio certo. “Vanessa pertence aqui” parece dizer-nos o olhar parado nas fotografias que mostra aos amigos. Às vezes sinto inveja da Vanessa. Também eu gostaria de me sentir pertença de algum lugar: “Ana pertence aqui.” Deve ser boa essa sensação de nos fundirmos à terra que nos dá o pão. Não serão as nossas raízes, as raízes dos humanos que se entregam à terra, que ajudam cada pé de trigo a crescer?

Não é necessário muito para se ser feliz, pois não? Costumava perguntar isto ao Alexandre e ele respondia: “De manhã bebes café e enfarruscas-te com o matutino, enroscas os teus pés sobre as tuas pernas, e tu finges que reclamas só para espaireceres do teu fastio contagiante. Pelo fim da tarde fumas cigarros no alpendre, lês romances de páginas encardidas e escutas os primeiros uivos que sobem a clareira. À noite jantas e fazes amor. E aos fins-de-semana passeias pelo bosque. Estudas a rotina das formigas e aproveitas a luz para fotografar escaravelhos. Bebes mais café. Vestes fatos de treino azul-marinhos ou jeans envelhecidos. Às vezes pedalas ao longo do rio e contas nele as pedras que se arrebitam da água e fitam as correntes. Dizes sempre que parecem ilhas que salpicam a longa esteira de sal do mar. O que é que te falta?” Eu ouvia-lhe aquilo e ficava a matutar. A ilha. Falta-me a ilha. E eu então perguntava-lhe outra vez: “Gostavas de viver numa ilha, Alexandre? Sim, numa ilha onde nos pudéssemos amar sem sermos vistos, uma ilha onde pudéssemos andar nus em plena luz do dia, onde pudéssemos deixar o sol tisnar-nos a pele e comermos a fruta das árvores, pêssegos dos ramos e uvas da cepa… e depois talvez, uma vez por outra, zangarmo-nos como se fossemos deuses. Athena e as suas tempestades. Posídon e o seu mar revolto. Ulisses e Penélope. Sete anos de tormentas. E a ninfa Calipso. Gostavas?” O Alexandre fazia silêncio e eu continuava a matutar.
Um dia, eu previ que iria partir, insatisfeita, rumo a uma outra ilha, talvez no mar Jónico. Agora que a neve já cessou de cair, quase que escuto o Alexandre: “Deixa-te ir. Zeus quer ver-te, mas é Apolo que te leva.”

E é isto que é morrer, não é? Num minuto eu estava bem. Depois eu estava no chão. Continuava a ouvir os miados do gato, mas cada vez mais longe. Não sei porque me surpreendi. Eu já estava à espera. Sabia que a qualquer momento…mas tu, Apolo? Ou Apolo é só um nome para…outros nomes?

(Ana Kandsmar In Somos Imortais mas temos que morrer primeiro)






Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Perdição de D. Sancho II, Paulo Pimentel

"Travessia no Deserto"